sábado, 14 de abril de 2012

Índia

Tinha tido uma imensa vontade de responder, naquele recenseamento de Lisboa dos anos 80 (demorou quase uma década até aos 90), que a minha religião era a judaica. Por nada, por rebeldia e para me colocar do lado de uma minoria. Eu era mãe solteira e, portanto, de uma minoria, não recenseada na época, e muito estigmatizada.
Jesus, que tudo compreende, e os meus Santos católicos e não, Buda e e os que defendem o Bem não iam julgar-me...mas, no fim de tudo, respondi: sou católica.O meu irmão Zé, soube eu mais tarde, na nossa casa da Lapa/Santos-o-Velho, teve a coragem e respondeu naquele censos a inverdade: judeu. E como fiquei contente! Ele era o meu Zorro, o Chefe Índio, o líder da revolta.
Não sei bem explicar a razão desta necessidade de contrariar os recenseamentos. É algo inato. O meu irmão era sempre o índio e, só num teatro de jardim escola aparece a fazer de comboy. Eu era como ele. Queríamos ser os Apaches honrados e dignos que morriam a defender o povo.
Com Chico Buarque ou Elis Regina - a minha versão preferida, a dois...
Diz o provérbio turco: cuidado com o que desejas; pode realizar-se.

No serão, depois da peça a que assisti com os "sarajevianos", durante o cerco que cobri, tive de ficar com eles. Não havia como sair contra as miras noturnas dos bem equipados "caçadores de cabeças".
Alguém, do grupo de intelectuais que mais respeito no mundo, trouxe uma pequenina travessa de salada russa (os russos chamam-lhe salada francesa), sem azeite ou atum ou peixe ou carne, para mais de 13 que estavam nessa ceia - metade afastou-se por não haver comida....restaram seis ou sete.

Por gentileza, comi três quadradinhos de batata e umas duas ervilhas.
Estava a partilhar uma refeição com sobreviventes de todos os grupos étnicos que não estavam de visita nem a cobrir guerras alheias. Eu vinha rosada e gordinha, com pouco mais de 30 anos viçosos e cheios de saúde. Os escritores, atores e amigos que ali estavam, passavam fome desde o início do cerco, quase dois anos antes.
Deixei-os a falar depois, quando me encolhi (tão satisfeita estava por me aceitarem como um deles!) que adormeci até muito de manhã...muito alta...estavam apenas três pessoas, em silêncio, à espera que eu acordasse, no dia seguinte. Uma professora de Matemática, um Prof. russo de Literatura e um "escritor" que falava inglês manhoso. Representavam as três etnias e convidaram-me para almoçar.
Íamos sair.
A cave onde tinha assistido a uma das grandes "perfomances" da minha vida, estava gelada e cheirava a fumo requentado de dia seguinte. As cadeiras estavam fora de lugar, desasjustadas do que eu queria gravar da véspera, de uma audiência subjugada e faminta de cultura e glória, de momentos de requinte.
Quando me levantei e os segui, tive a certeza de ser índia. Naquele momento, ei, com a memória do meu irmão Zé Mau ia conhecer os índios na sua aldeia.

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