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Todos os repórteres do mundo queriam avião para Sarajevo. Mas, desde que os sérvios tinham atingido um avião italiano da coligação, os voos de Zagreb para Sarajevo estavam suspensos.
Eu almoçava com dois oficiais portugueses que estavam em representação europeia na troika, em Zagreb, e não conseguiram evitar as exclamações de pesar quando souberam que o Capitão Santana, a chefiar as operações no aeroporto da capital bósnia, fora atingido. Deram-me a dica. Zarpei imediatamente para o aeroporto, que ficava perto. Uma fila de dezenas de jornalistas atropelava-se ao balcão. Do lado direito, bem ao fundo, uma pequena porta entreaberta deixava vislumbrar o movimento na placa. Obriguei o jovem Philipe, o meu fixer (tradutor/guia/arranja tudo) a ficar no átrio e esgueirei-me, fechando a porta atrás de mim.
A uns 800 metros estava o almejado avião alemão de todos os desejos, da NATO.
Nos hangares contíguos do aeroporto, os carregadores de mantimentos da ONU colocavam paletes de rações e toda a espécie de mantimentos nos "diabos". Uns rapazes simpáticos, direitinha aos quais me dirigi, com um sorriso atrevido. Era só eu, com uma mochilita pequenina com medicamentos para doentes de hemodiálise e cigarros para os médicos e para quem precisasse, mala Nikon completa, rolos, pilhas, gravadores.
Pedi-lhes boleia e eles disseram que não. Roubei o boné da ONU da cabeça de um e dirigi-me, em passo apressado, até chegar à frente do gigantesco nariz do avião e olhar o comandante nos olhos. Era uma mulher sozinha, não passava disso e acho que não me deram importância.
Ajoelhei-me e estiquei o dedo a pedir boleia, com ar meio desesperado, meio desafiador.
Já tinha os rapazes todos atrás de mim, com o carregamento junto, mas a boleia estava assegurada.
Com a roupa do corpo e material para uns dias, fui a única jornalista a partir para Sarajevo, no dia em que o glorioso Capitão Santana foi ferido pelos fragmentos de granadas de obus. Pedi informações ao comandante alemão que me disse que o capitão português, entretanto, já tinha retirado os estilhaços e regressado ao posto, que continuava sob ataque da avião sérvia.
Desde o início do voo, a tensão instalou-se na cabine. Antes de entrarmos no perímetro aéreo da cidade, os caças de Belgrado iniciaram uma dança assustadora em nosso redor. Perguntei, ingénua, pelos páraquedas. Ofereci-me, gentil, para os ir buscar.
E o navegador, fleumático, de cachimbo na boca, respondeu-me: nestes cargueiros não temos páraquedas.
Muitos minutos depois, carregadíssimos de probabilidades trágicas, o comandante percebeu e explicou em voz alta que estávamos apenas a ser escoltados e intimidados, para sabermos que seríamos abatidos quando a "Federação" quisesse.
Mal aterrámos reiniciaram-se os bombardeamentos da placa, a descarga debaixo de tiros e a transferência da tripulação para os AV5 blindados da UNPROFOR - United Nations Protection Force, ou Forpronu, conforme os dias...
Mas "como os blindados da ONU não transportam civis" - naquela missão era assim - eu fui deixada debaixo de fogo, aos saltos como um coelho, obrigada a procurar refúgio como um rato.
Pedi aos soldados, que ripostavam, para chamarem o capitão Santana, mas eles não tiveram grande possibilidade de o fazer.
Fui sozinha para a porta do aeroporto que dava para o exterior. Um fotojornalista da CNN, David Rust, escondido atrás de um carro estacionado do lado oposto espreitava, com capacete, e acenava-me. Mas sempre que tentava comunicar comigo, um sniper atirava, ora em direção a mim, ora em direção a ele.
Claro que desistiu e eu regressei para junto dos soldados que gesticulavam, já com o Capitão Santana. Furioso, o herói quis mandar-me de volta, no mesmo avião, para Zagreb.
Eu? Nem pensar. E, graças a Deus, os bombardeamentos invalidavam qualquer tentativa para levantar voo.
Quanto a mim, não fazia ideia onde tinha aterrado. Longe ou perto do centro? Como deslocar-me? Nem mapa tinha!
Sentei-me de pernas cruzadas no chão, no meio daqueles militares tão assustados como eu, de todas as nacionalidades, mas com capacete azul nas cabeças. Lembrei-me, vagamente, de ainda ter um boné, um boné do mesmo azul clarinho que me permitiu a piada, a graça para obter a boleia.
O capitão não teve como me manter refém. Meteu-me mesmo num blindado e aproveitou para ir fazer o relatório à missão na sede da UNPROFOR em Sarajevo. E aí sim, fui largada no corredor da entrada e obrigada a procurar uma saída sozinha.
Procurei a proteção de placas metálicas no exterior, debaixo de fogo. Depois foi fácil. Tinha acabado de entrar no exterior da sede de transmissões da BBC e alguém me deu as boas vindas ao inferno, em inglês: Welcome to Sarajevo.
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