Houve uma tarde especialmente terrível, em Sarajevo. Uma tarde em que quatro miúdos irrequietos foram autorizados a sair um bocadinho das casas, que se tinham tornado refúgios com aparência de bunkers e restos de móveis queimados numa lata no meio das salas ou no forno aberto dos fogões das cozinhas...para aquecer. Brincavam quando foram apanhados pelos estilhaços da mesma explosão de granada de obus.
Reeencontrei-os, mais tarde, ao "passar" (fazer a contagem dos mortos do dia)bem...naquele local muito, muito frio, onde o odor nos gela as narinas e não nos livramos dele jamais.
Levaram-me à cantina dos franceses, na sede da missão da ONU, onde eu fui procurar um qualquer perfume para disfarçar o que se me tinha entranhado na pele. Só havia água de colónia barata, mas não me fiz rogada e untei o nariz e as narinas, o que me ajudou naquele espírito de "ir às compras".
Naquela altura eu vivia de trocas, saíra de Zagreb com medicamentos e cigarros, tinham-se acabado os negativos, o pessoal da televisão dava-me velhos rolos de filme, encontrados nos arquivos e eu tinha de pagar de algum modo.
No casão militar da UNPROFOR, além de rações francesas de combate, que nos deram (as melhores do mundo, asseguro) havia whisky Johnny Walker. Imediatamente, pensei que era o melhor para o pessoal médico e dos Media relaxar. À saída íamos (o Pinto Amaral, como sempre, era o índio das Descobertas)todos lampeiros a saír do edifício, quando rebenta o bombardeamento. Eu já estava do lado de fora. O capacete continuava a ser um belíssimo recipiente, desta vez para levar garrafas de whisky. O Pinto Amaral ainda estava a passar a porta e teve tempo de regressar ao interior.
Quando a artilharia inimiga disparava eu via uma luz para aí a 1200 metros...os sacos de areia estavam encostados á entrada e não havia, em meio segundo, hipótese de retroceder sem partir nada. A uns 300 metros, do lado esquerdo, estava um AV5 estacionado. Com rodas e espaço para eu mergulhar por baixo! E assim foi: pleno salto de gazela com um capacete nos braços a atirar-se e a rastejar para debaixo do AV5.
O bombardeamento parou e eu já ouvia as espanholadas do pessoal!!! Eh...eh...Juanita Camiñante, Johnny Walker, mira la imagen que haces de los reporteros"...ai que desgraça...a TVE estava a fazer um documentário sobre a sobrevivência dos jornalistas durante a cobertura do cerco de Sarajevo, e tinha-me filmado, de um canto do edifício, em pleno voo, a salvar um capacete cheio de garrafas como se fosse ouro, aterrando debaixo de um blindado da ONU.
Uma boa negociação impediu o escândalo.
Acreditem ou não, nunca bebi uma gota do que trouxe da chamada cantina dos franceses. Precisava mais de uma maca e de um cobertor. Como prémio, alguém, durante a noite, levou-me uma almofada ao cantinho do escritório onde, finalmente consegui dormir.
No dia seguinte estava tudo bem. Arturo Perez Reverte continuava a chamar-me Maria La Portuguesa. Eu detestava.Grrrr.
quarta-feira, 18 de abril de 2012
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