terça-feira, 3 de abril de 2012

Sarajevo

No dia 6 de abril de há 20 anos teve início o cerco de Sarajevo. Eu podia apenas vestir a t-shirt comprada que afirma "I survived Sarajevo... twice". Mas não. Eu estive lá. E não tenho grandes sobressaltos ao revisualizar imagens com som das explosões, não. O meu problema sempre foi com os iatos, o silêncio. Quatro cadáveres de crianças apanhadas por uma granada de obus quando brincavam num túnel. Por exemplo. A pausa do médico a quem dei cigarros e perguntei porque não salvava um pé e ia amputar três membros a uma idosa. O escândalo no olhar dele: "e deixo morrer os outros mutilados para salvar o pé da velha?" Silêncio. O meu, muito envergonhado.
Este fim de semana vamos encontrar-nos, os sobrevivos de Sarajevo, repórteres de guerra e escritores, atores da defesa da cultura durante o atroz sacrifício do bem comum... vamos lembrar o incêndio na biblioteca milenar, o estatelar das granadas nos muros de meio metro em frente ao parlamento e os torniquetes que éramos obrigados a fazer das camisas rasgadas enquanto os carros da UNPROFOR passavem sem parar como gente doida - "a ONU não permite o socorro a civis, neste mandato"...ainda ecoa na minha cabeça. E os bósnios atreviam-se a sair de casa, durante os bombardeamentos, e a trazer veículos para levarmos aqueles corpos meio desfeitos ao Kosova Hospital. Os médicos, enfermeiros e voluntários, eram alvejados quando nos ajudavam a retirar aquela gente dos atrelados. E a nossa ausência era fatalmente justificada com "menos ou mais um jornalista"! Neste caso tenho de admitir na minha categoria dos Heróis sem Tempo todos os civis de Sarajevo, de todas as etnias, que ajudaram a salvar vidas. Bem Hajam.
Por mim, os anos de sofrimento por ainda ter pernas, levaram-me quase a perder uma. Até que compreendi o meu dever de testemunho e a minha enorme dívida para com os que me desviaram da minha morte ou morreram em vez de mim, com as balas e granadas que me foram destinadas. Gracias, Ortega, Martinez. Salam Alekum, Ibhraim. Arigato, Kori. Obrigada, Capitão Santana e Pinto Amaral... e tantos outros. E obrigada a todos os atores que levaram à cena durante o cerco a peça "Abrigo e Resistência" e me convidaram para sobreviver com eles durante dois dias. Gracias a La Vida, como diria Joan Baez.

1 comentário:

Mafalda M. disse...

Olá Maria João,

Copiei o texto e colei no meu cantinho, acho que deve ser lembrado e nas palavras de quem viveu e reviveu Sarajevo julgo ser mais eficaz.
A Maria João faz parte desses Heróis Sem Tempo, uma heroína que me serviu de exemplo durante a adolescência e cujas aventuras ia vivendo à distância como exemplo de bravura e coragem.

Bejinhos

Mafalda