Qual o meu espanto quando entro numa sala cujas paredes pareciam debruçar-se sobre dois bancos corridos de madeira com uma mesa no meio, na vertical em relação à janela. No topo da mesa, de costas para a janela, colocaram o meu lugar.
Eu andava muito avessa às janelas. Tinha muita fome mas o estômago apertava-se como um nó, que fazia bater imenso o coração. No fundo, também não estávamos ali para comer.
Juntaram-se mais dois convivas, aos três iniciais, além de mim. No prato de cada um vieram dois tomates cereja e uma lula recheada.
E a casa estava gélida, o bafo do nosso ar quente via-se ao longe. O lauto repasto foi acompanhado de uma garrafa de uma mistela que devia querer ser whisky. E demorámos duas horas a comer.
Lembro-me que partia um quarto do tomate cereja (que nunca comera, até então), e saboreava-o duas ou três vezes no interior de todos os recantos da boca, antes do engulir. Bebia um copo da mistela, ficava meio enjoada e enganava o medo que me arrepiava toda a coluna dorsal, a cada tiro que saía dos andares de cima para a frente de guerra, no outro lado da ponte.
Todos tinham acabado de comer e estavam estupefactos por eu não ter exigido mudar de lugar, e também por não ter passado de um terço da lula, o melhor de tudo, que os outros tinham comido em priimeiro lugar.
Em russo, alguém deu a ordem que me foi transmitida em inglês: "podes passar para o banco, para o nosso lado".
Brindámos, festejámos...acho que estive sempre muito desconfiada, era a minha vez. Mas depois daquela mistela de grog feito em casa, já me davam palmadas nas costas e repetiam que eu ia fazer a "história" da minha vida, um scoop.
O que é estranho é que não me lembro do sabor da lula recheada. Mas fiquei fã dos tomates cereja.
Fui-me embora com o cabeça de casal dos Profs catedráticos que me tinham convidado. Do outro lado da ponte esperavam-me os soldados. Lembro-me bem que não houve um tiro durante a minha passagem.
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Maria João Carvalho fotografa por Pedro Caiado
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