sábado, 23 de janeiro de 2016

Os Queimados - cont.

Fora do grupo,  algumas  mulheres isolam-se, invariavelmente, para se coçarem . A cicatrização, durante este tempo cinzento e pesado, provoca uma inconsciência que leva ao rasgar da pele, ao arracar das ligaduras para chegar com as unhas aos agrafos que ainda arrepanham este cordão de lamúrias - só as pontas dos dedos estão à vista ... as luvas de tecido compressivo tolhem as mãos. E durante este julho opressivo de tempestades diárias, as enfermeiras distribuem folhetos informativos, para fazer face à canicula. Talvez em memória dos cerca de 15 000 idosos mortos de sede. na solidão absoluta do verão de 2013.
Aqui, o calor não assusta os queimados; são todos peritos em conseguir a melhor aragem para evitar esse ardor da pele que fere com agulhas invisíveis. Mas há uma frágil dama para quem tudo é mais dificil. O seu rosto não ficou deformado pelas chamas, está apenas ligeiramente manchado a vermelho. O cabelo, que pintava cor de violino, está cada vez mais cinzento escuro, e branco. Pequenina, elegante como uma "teenager", com um tom de voz entre o de Melanie Griffith e o de uma qualquer princesinha muito mimada. Chora quando lhe perguntam o que aconteceu. Não quer lembrar. O seu corpo queimado está envolto em compressivos, mas ela arranja umas roupas divertidas e irreverentes, que ainda surpreendem mais quem a olha e ouve com atenção. À porta do seu quarto foi afixado um alerta aos enfermeiros, para se protegerem, colocarem as luvas e tudo o mais que é obrigatório para fazer os pensos e o que ali se usa só para entrar. A menina-grande tem um germe num braço, que impede  cicatrização; no entanto, as vizinhas do corredor beijam-na e mimam-na como a uma bonequinha (que aqui é), sem temer o contágio. Num destes fins de semana, obteve autorização para visitar os filhos, já adultos. Veio tão contente, tão sorridente que parecia cantar enquanto falava. Num outo dia, fez uma festa de despedida à sua fisioterapeuta e convidou alguns  outros clínicos e pacientes para mostrar o quanto essa profissional a ajudou. Comeram-se bolinhos da Córsega com sumo de manga e de maracujá.

No quarto ao lado, há uma senhora de idade que, em janeiro, deste Ano da Graça de Deus de 2004, adormeceu a fumar, numa salinha de um hospital psiquiátrico, onde repousava - já devia estar medicada para dormir, nesse trágico momento, mas não confirma. Não havia vigilância; só quando as labaredas ativaram o alarme ela foi socorrida. É um daqueles casos em que as mãos ficam muito  afetadas. Todo o corpo recupera, salvo "o pescoço e dois dedos que lhe fazem muito falta", como ela diz. Vai ter alta dentro de pouco tempo, sem saber o que fará de seguida quanto às suas limitações. O marido visita-a, ao domingo, e ela põe os seus brincos de ouro e os aneis mais bonitos. Coloca um pouco de maquilhagem e tenta sorrir, no pequeno bar da instituição, que fecha às 17:00 horas. Mas os dedos não enganam: esgravatam entre a roupa e o seu fato de telas elásticas que apertam as camadas enxertadas de pele, como a todos os queimados, durante 18 meses. Num frenesim diabólico, percorrem a nuca e o peito, levantam mesmo a manga compressiva, para chegar a um dos braços. O marido, e os amigos que passam, já a avisaram, sem convicção, de que faz muito mal, deve parar de se coçar. Deixou de fumar como muitas das pessoas afetadas pelo fogo (a nicotina é a principal causa de rejeição do transplante de pele). A coceira (da pele alheia, que não se aninha como pele viva) não lhe está a deixar marcas, como ela mostra, vaidosa.
Na sala em frente do bar, jogam-se cartas, damas, dominó, triminó e mesmo xadrez. Não há nenhum "ponto de internet" para os pacientes; há uma  ergoterapeuta, Heléne, que oferece o uso do seu computador aos pacientes que têm a sorte de a conhecer para lho pedir. Um computador velho, a um canto da sala de convivio, serve para jogar solitário ou tetriz. Em dia de serão, até pouco depois das 21:00 horas, distribuiem-se as letras de músicas francesas conhecidas, para assim afinar a alma dos solitários que, a custo, são arracados aos quartos. 
Os queimados aproximam-se mais, mas também uma jovem mãe que ficou perdida num labirinto sem memória, depois de um acidente rodoviário. Está numa cadeira de rodas, de onde o corpo descai e pende para terceiros - até para se vestir. Vai a casa e, quando regressa, perguntam-lhe pela filha pequena e ela, invariavelmente, devolve a pergunta: "Filha, qual filha?" .  A sua memória recente ficou entre as chapas retorcidas do automóvel, no acidente. Mas, apontando-lhe os refrões, tenta cantar e distribui sorrisos de criança palos camaradas de infortúnio.

Já deve ter partido a mulher mais rara e solitária de L'Argentière. Quando foi internada, em janeiro, tinha um braço e uma perna paralisados, e pesava 30 quilos. Bebia. Durante os meses de reeducação, nos tempos livres, carregava um saco cheio de jornais, revistas e livros, correndo todos os bancos do jardim onde batia o sol. Bronzeadíssima, perto da negritude, vestiu sempre jeans e t-shirt branca. Fazia palavras cruzadas durante horas. Pouco mais se lhe ouviu do que uma resposta a um bom dia, exceptuando o momento em que uma recém chegada demostrou algum interesse e carinho, e ela, então, contou o que lhe ia na alma: a dor de ter um neto que não conhecia, o disparate que era a sua vida, a loucura total, a bebedeira até ao vazio, até à paralisia.

Os doentes das diferentes alas só se encontram no jardim. Ao domingo, os grupos de visitantes são olhados de revés pelos que não tem familia ou amigos... ou os têm tão longe que não podem vir. 
O avô do jovem universitário mais concentrado na sua recuperação (até por estar em piores condições) vem visitá-lo de quando em quando. Viaja de Clermont-Ferrant. Olha o neto com os mesmos olhos azuis, brilhantes de entusiasmo, alampando-se à vida como se esta fosse a rocha da eternidade. Imaginamos como teriam sido as orelhas do jovem, observando o desenho das orelhas do avô, que parece o Paul Newman e não precisa de usar chapéu de marca  desportiva para tapar uma cabeça deformada pelas cicatrizes. O neto também não, porque o seu sorriso faz desaparecer qualquer outra impressão ... mas raramente sorri. E só tira o boné para.... "nim".
Faça sol ou faça chuva, venha quem vier ou esteja quem estiver, há um drama a completar, por não se conseguir fazer entender uma sofredora argelina, a quem o fogo matou um filho e queimou os outos dois. Os vizinhos discutiam e o marido da amiga de baixo vazou um jerrycan de gasolina na sala de casa e ateou o fogo, com a  mulher e os filhos lá dentro. Fechou a porta e saiu (já está preso). A mulher, que está aqui, vivia no andar de cima, saiu e regressou várias vezes àquele braseiro para salvar as crianças, as suas e as da outra. Mas o filho que deu o alarme deixou de respirar nos seus braços. 
A fortuna não sorri a esta mulher tanto como à argelina que aqui compra anéis de ouro aos comerciantes da desgraça, que mercam ao fim de semana, e que vai voltar a refazer a pele do queixo. A  argentina  exprime-se em tão mau françês que, por mais que se tente ajudar para que desabafe, o diálogo torna-se impossivel, mas ninguém chamou psicólogos argentinos, por maior que fosse a sua dúbia fortuna. 
Por acaso, quando veio um paciente italiano, (um camionista acidentado e queimado nas estradas de França), uma outra paciente e uma enfermeira compreenderam-no. 
Mas ao fundo da memória da boa samaritana ninguém chega para arrancar o seu menino dos braços, enquanto as filhas sozinhas, recuperam noutro além: talvez até já estejam em casa de familiares ... uma coisa se conclui facilmente da história desta desgraçada, queimada da cabeça aos pés: é que o marido se desinteressou completamente do seu destino. Por isso, passa o tempo sentada à sombra de uma árvore ou deitada no seu quanto, sempre com a porta aberta ... talvez esperando uma mão, que na sua mão magoada, espalhe pó de estrelas de um novo astral.  Há dias em que grita ao telefone, em árabe, e todos acabam por a amaldiçoar... mas é sol de pouca dura ... basta-lhe este labirinto para acender mais lume nos olhos negros, pois, na sua alma triste, sempre desculpa o mal que os outros lhe fazem. Não há  atividade em que participe por causa da barreira da língua e do luto do coração. Arranha-se até fazer sangue, e não vale a pena dizer-lhe nada; só a fisioterapia a apazigua e a mudança de pensos das sua feridas na carne. 
Carne que a outros o fogo comeu e reduziu à reconstrução possivel com pele de uma perna, da barriga ou de um banco de pele. A amnésia apagou tudo o que envolveu o pânico, neste caso. As chamas do forno apagagram-se com acumulação de impurezas nos bicos do gás. Ao abrir o forno, com um cigarro aceso, colaram-se-lhe labaredas ao pijama - foi outra que deixou de fumar - portuguesa. 
Uma outra francesa, casada com um português, com um filho bombeiro, no Algarve, queimou-se quando fazia uma quirche no forno, que retirou ainda liquida, a ferver, e a desiquilibrou no colo, de cócoras. o que a fez cair, entornando o fervente produto. Não percebeu  a gravidade das queimaduras e só recorreu ao hospital passados 3 ou 4 dias, a pôr vaselina à superfície - a pele continuava a queimar em profundidade, devagarinho até ao insuportável: 3º Grau. Dias depois da sua chegada, o segundo filho, que vivia com ela, teve um acidente de mota e vai ter de amputar um dedo. Aqui, logo a animaram: um dedo anelar não é assim tão importante. A sua cabeça cheia de caracois e os seus olhos verdes farão com que as meninas apenas sintam as mãos e lhe mergulhem no coração com votos de alma..

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Os Queimados

Escrevi um livro, na ânsia de registo na recuperação, e depois, horrorizada com o que escrevi, deitei fora computador e disco rígido....quando me dei conta do que fizera, era tarde.
Mas, 12 anos depois, recupero, nas pastas da minha malograda irmã, pintora Patrícia de Medeiros, morta em 2011, um excerto da página 6 à 21. E vou transcrevê-lo. Vale a pena. São muitas histórias e vivências do absurdo que merecem ser relidas. A partir de amanhã, aqui.

Fica a primeira das reencontradas páginas (a sexta), ao fim de um parágrafo:

horas por dia numa cadeira de rodas - e confessou-o a uma outra, que já vai em quatro anos do mesmo meio de locomoção. Disse-lhe para guardar segredo, não se importava que a amada não se pudesse deslocar... ele empurraria a cadeira ou levá-la-ia ao colo.
Um casal jovem que por aí anda, depois de suscitar todas as dúvidas - não se sabia onde o rapaz dormia - acabou por ser aceite pelo pessoal médico, que arranjou um quarto nas imediações ao enamorado. Ele ficou sempre até depois do jantar e depois do fim de todas as visitas. Fumava erva com a sua companheira. A ela, o fumo não impediu as melhoras e, rapidamente, passou da cadeira de rodas para a muleta (mas não era queimada, recuperava de uma operação a uma perna, na sequência de um acidente rodoviário).
O jardim parece uma feira: coxos e manetas jogam a petanca e alguns queimados jogam badmington e ping pong. Poucos estão no seu perfeito juízo. O batalhão de psicólogos e psiquiatras realiza-se aqui, em plenitude.. Não é por acaso que Sainte- Foy-l'Argentière foi hospital militar de veteranos da I e II Guerras. A propriedade de 18 hectares foi oferta de um nobre para um colégio feminino na metade do século XIII. Em 1273, o nobre Damoiseau Aymont de Coise consagra uma parte dos bens à construção.
No tempo de Napoleão, 1804, um seu sobrinho, monge, fez dele um seminário (correu com as raparigas) e fez dele um seminário. Com a separação da Igreja e do Estado, e dos seus bens, a República apropriou-se de l'Argentière. à francesa.

Não é importante referir os nomes dos que aqui chegam e partem.
Chegam envoltos em faixas, como múmias arrancadas à morte e, depois, com o passar dos dias, vão surgindo com novos moldes plásticos nos rostos atormentados.. Os 'garagistas' do lugar autoclamam-se "Robocop's", a si e aos outros. Se entristecem um pouco mais, e se escondem no parque, passam a ser 'fantasmas'. São vários.
Depois do jantar, às 19horas, mesmo com chuva, há encontro tácito, marcado no jardim. Vêm alguns dos paraplégicos de outras alas, por outras causas, e trocam graçolas de mau gosto.
Algumas raparigas retiram os autocolantes de nicotina para deixarem de fumar e pedem cigarros. Trocam os NTB da farmácia (nem tabaco nem nicotina) por Marlboro, Camel, qualquer tabaco ou erva para enrolar em mortalhas que nunca faltam. Sabem que atrasam a cicatrização das suas chagas.
Uma das mais belas e originais é uma vietnamita que, há quatro anos, vive limitada à sua cadeira de rodas verde, depois de múltiplos transplantes num calcanhar que não cicatriza por não deixar de fumar. Os médicos fornecem tudo o que ajude ao fim do vício. Mas, no auge do desespero, ela arranca os "patchs" redondos que lhe marcam os braços e enebria-se com o primeiro cigarro que alguém lhe der. Aqui, o tabaco é como a droga. Lá fora, incitam-se os jovens com oferta de algumas gramas, para que se tornem clientes mais tarde. Aqui, dão-se cigarros por pura maldade, para não se descarnar sozinho. Por isso, aos que partem cedo deste círculo vicioso, não se olha o rasto, diz-se um bom dia . como quem atropela um gato - sempre é um felino com magestade.

continua.