Escrevi um livro, na ânsia de registo na recuperação, e depois, horrorizada com o que escrevi, deitei fora computador e disco rígido....quando me dei conta do que fizera, era tarde.
Mas, 12 anos depois, recupero, nas pastas da minha malograda irmã, pintora Patrícia de Medeiros, morta em 2011, um excerto da página 6 à 21. E vou transcrevê-lo. Vale a pena. São muitas histórias e vivências do absurdo que merecem ser relidas. A partir de amanhã, aqui.
Fica a primeira das reencontradas páginas (a sexta), ao fim de um parágrafo:
horas por dia numa cadeira de rodas - e confessou-o a uma outra, que já vai em quatro anos do mesmo meio de locomoção. Disse-lhe para guardar segredo, não se importava que a amada não se pudesse deslocar... ele empurraria a cadeira ou levá-la-ia ao colo.
Um casal jovem que por aí anda, depois de suscitar todas as dúvidas - não se sabia onde o rapaz dormia - acabou por ser aceite pelo pessoal médico, que arranjou um quarto nas imediações ao enamorado. Ele ficou sempre até depois do jantar e depois do fim de todas as visitas. Fumava erva com a sua companheira. A ela, o fumo não impediu as melhoras e, rapidamente, passou da cadeira de rodas para a muleta (mas não era queimada, recuperava de uma operação a uma perna, na sequência de um acidente rodoviário).
O jardim parece uma feira: coxos e manetas jogam a petanca e alguns queimados jogam badmington e ping pong. Poucos estão no seu perfeito juízo. O batalhão de psicólogos e psiquiatras realiza-se aqui, em plenitude.. Não é por acaso que Sainte- Foy-l'Argentière foi hospital militar de veteranos da I e II Guerras. A propriedade de 18 hectares foi oferta de um nobre para um colégio feminino na metade do século XIII. Em 1273, o nobre Damoiseau Aymont de Coise consagra uma parte dos bens à construção.
No tempo de Napoleão, 1804, um seu sobrinho, monge, fez dele um seminário (correu com as raparigas) e fez dele um seminário. Com a separação da Igreja e do Estado, e dos seus bens, a República apropriou-se de l'Argentière. à francesa.
Não é importante referir os nomes dos que aqui chegam e partem.
Chegam envoltos em faixas, como múmias arrancadas à morte e, depois, com o passar dos dias, vão surgindo com novos moldes plásticos nos rostos atormentados.. Os 'garagistas' do lugar autoclamam-se "Robocop's", a si e aos outros. Se entristecem um pouco mais, e se escondem no parque, passam a ser 'fantasmas'. São vários.
Depois do jantar, às 19horas, mesmo com chuva, há encontro tácito, marcado no jardim. Vêm alguns dos paraplégicos de outras alas, por outras causas, e trocam graçolas de mau gosto.
Algumas raparigas retiram os autocolantes de nicotina para deixarem de fumar e pedem cigarros. Trocam os NTB da farmácia (nem tabaco nem nicotina) por Marlboro, Camel, qualquer tabaco ou erva para enrolar em mortalhas que nunca faltam. Sabem que atrasam a cicatrização das suas chagas.
Uma das mais belas e originais é uma vietnamita que, há quatro anos, vive limitada à sua cadeira de rodas verde, depois de múltiplos transplantes num calcanhar que não cicatriza por não deixar de fumar. Os médicos fornecem tudo o que ajude ao fim do vício. Mas, no auge do desespero, ela arranca os "patchs" redondos que lhe marcam os braços e enebria-se com o primeiro cigarro que alguém lhe der. Aqui, o tabaco é como a droga. Lá fora, incitam-se os jovens com oferta de algumas gramas, para que se tornem clientes mais tarde. Aqui, dão-se cigarros por pura maldade, para não se descarnar sozinho. Por isso, aos que partem cedo deste círculo vicioso, não se olha o rasto, diz-se um bom dia . como quem atropela um gato - sempre é um felino com magestade.
continua.
quinta-feira, 21 de janeiro de 2016
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