sábado, 7 de abril de 2012

Porque é que ainda tenho um pé?

A Páscoa, para mim, não é feliz. É dolorosa como a Via Sacra. De há uns anos para cá, tirando o domingo que passo com amigos cristãos ortodoxos (valorizam muito a Páscoa que quero contrariar) e as amêndoas ou chocolates que os camaradas de trabalho teimam em partilhar, não compreendo. Lembro, vagamente, de ser um tempo feliz em que levávamos para casa um gaiato de entre os 12 a quem o padre lavava os pés na cerimónia da Missa. Isso passou. Não havia pobres ou não havia mais padres ou gaiatos...havia uma enorme vergonha da partilha de dificuldades. Seria no Natal? Avante...gosto do Natal, por isso baralho as recordações, mas não gosto da Páscoa. Duvido de ressureições milagrosas mas defendo-as como uma esfomeada de milagres. Sou a contradição viva de todas as dúvidas. No dia 9 de abril de 2004, aconteceu-me ter a resposta à questão que coloquei a Deus em 9 de abril de 1994.
Porque é que eu tinha, ainda, o pé?
Os outros... não.

Começou tudo com o bombardeamento do parlamento de Sarajevo e eu, no jardim em frente, com cerca de 15 mutilados em estado de choque.
Das próprias camisas, rasguei pedaços de tecido para, com pauzinhos que vagamente apanhava pelo chão, fazer torniquetes. Interrompi-me várias vezes aos gritos para os AV5 blindados da ONU que passavam na rua. Eles não paravam. Desde a minha chegada que eu sabia que não recolhiam civis.
Parou o novo blindado da BBC e os camaradas dividiram sete dos oito feridos de morte comigo.
Até que parou um bósnio corajoso, numa camioneta de caixa aberta. Já não ajudei a carregar os feridos, estava exausta. Fui depositada com eles no Hospital de Kosovo, em Sarajevo. Mas o sangue não era meu. Eu não tinha pauzinho em nenhum tornozelo, pulso ou antebraço. Chegando, desajudei. Fumei uns 30 cigarros enquanto esperei a discussão com o chefe das urgências...
"- Aquela mulher vai ficar sem os dois braços e um pé....porque lhe corta o outro? E aquela outra, amputa-lhe um terceiro membro?!"
E ele, agastado, pedia-me mais um cigarro e respondia com uma pergunta: "deixo morrer as dezenas que estão a esvair-se em sangue, à minha espera?"
O Pinto Amaral e o Dinis chegaram para a reportagem na morgue (ao lado das urgências) e levaram-me com eles.
À chegada à televisão, comprei um litro de água por 20 dólares. A água mais cara jamais comprada! Venderam-ma num garrafão de plástico serrado ao meio. Levei-a, preciosamente, para o duche da cantina da TV bósnia, onde não havia água há muito tempo. Não sabia se havia de tirar a camisa e esfregar o sangue ou se havia de passar a água por cima. Era uma camisa cor de estanho em seda selvagem (usava-a sob o colete e o casaco militarista), secaria rapidamente e a cor ficaria esbatida...por cima, o colete de mil bolsos que não lavaria. Pendurei-o no varão da cortina, para dar sorte, meio teso meio triste e tudo menos "consorte"...
Depois de despejar água por cima da cabeça, percebi que tinha de tirar a camisa e esfregá-la com algum sabão do corpo. Desisti do sabão e esfreguei a camisa enquanto que, com o pé, "ajudava" a água ensanguentada a chegar ao ralo. Olhei os meus dedos do pé...dedos. Porque é que eu tinha escapado com dedos? Com pé? E os outros a quem estavam a cortar os tendões....ainda?! As explosões abalavam o edifício e já não havia mais ninguém a mandar-me para a cave, para o abrigo.
Depois da última gota do precioso líquido, vesti o colete, agarrei na camisa e no material e botas, para recolher ao escritório da equipa espanhola que me recolheu na Tv bósnia. Não estava ninguém. Estalavam ecos que abalavam as paredes. Encolhi-me num canto para adormecer, nesse dia em que perdera o medo e me aproximara da morte.
Evidentemente, não dormi. Fui para as escadas entre o primeiro andar e a entrada. Estavam lá dois técnicos bósnios, a cantar. Ofereceram-me o grog deles e eu, que não conseguia chorar nem agradecer, cantei-lhes "Os teus olhos, negros negros, são gentios, são gentios da Guiné".
A resposta à minha questão filosófica tardou, mas foi violenta...

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