sexta-feira, 13 de abril de 2012

Resistência

post dedicado a Miguel Borges, fabuloso protagonista de "A Morte de Danton", em cena no Teatro Dona Maria II, Lisboa


Cantar nos degraus da televisão bósnia, quando todos os outros dormiam na cave (e levavam as almofadas!) durante os bombardeamentos noturnos na Sarajevo cercada, valeu-me um convite para o teatro (com Zoran Becic).
Não um convite qualquer, mas o teatro dos resistentes, aquele a que só os "sarajevianos" tinham acesso. Na tarde seguinte, como prometido, foram buscar-me às traseiras da televisão. No centro da cidade, passámos a esquina do café onde paravam todos os milicianos à civil, espiões e intelectuais, e torneámos a parede escavacada para um pátio, entrando por um labirinto de passagens muradas, com a cabeça baixa e em passo de corrida, para evitar os tiros das armas com objetivas mortais que se fixavam em nós.
Hoje, sexta-feira 13, lembro que tive sorte. Muita sorte. Foi estranho assistir a uma peça com grandes atores a falarem de sobrevivência, quando somos sobreviventes.

A chegada dos atores e do público foi muito difícil.
A adrelina e o medo levaram-me ao segundo andar para ir à casa de banho, antes do início da peça.
Tinham-me avisado: a janela dava para as janelas dos 'snipers', mesmo em frente. Não havia adesivos opacos nos vidros, nenhuma proteção além de uma tinta quase transparente, meio gasta, que piorava o efeito das sombras naquele fim de tarde. A porta do minúsculo cubículo dava para a janela. Sentei-me, como uma mola, no canto entre a janela e a sanita. Como levantar a cabeça, sabendo que, do outro lado, estava um caçador e eu era o alvo? Como morrer, com dignidade, na casa de banho do teatro? Como gritar por socorro quando todos estavam na cave?
Também não teria voz...a sanita de porcelana parecia um enorme pescoço branco de um perú, prestes a ser cortado para a ceia natalícia. Eu...era apenas o copo de aguardente que alguém usaria para o sangrar.
Lembrei-me dos diretores de teatro atingidos antes, para não levarem aquela peça a público. Um já morto, o outro, numa cadeira de rodas, e o terceiro, o que me recebeu...fiz, naquele momento a frase do posterior poema que incluia: "a luta poética de escritores/ muitos, a quem os dedos já roubaram/para que, da morte, não sejam delatores".
De um salto, num ápice de fúria e desafio, fiz o que tinha a fazer e desci as escadas numa corrida, quase sem respirar. A peça teve início uns minutos depois. Eu chorei baixinho, durante uns minutos. Só uma escritora muçulmana muito querida, que se chamava Ferida, me limpou a face e me apertou o ombro em sinal de compreensão. O grande Zoran catapultou-me para outra realidade: a da sobrevivência cultural no meio do conflito. Mergulhei de tal modo que, no final, já era um deles, um bósnio ligado a todas as etnias.

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