segunda-feira, 23 de abril de 2012


Era tão fácil! Teoricamente era tão fácil ir ao Afeganistão. Em Sarajevo, o Jorge contou-nos ter passado nove anos no Afeganistão, introduzia-nos no país e enviava-nos aos seus contactos, e eu e o Ibrahim faríamos a reportagem sozinhos. Eu iria vestida de homem, com sobrancelhas e barba postiças, assumindo que era mudo e ajudante. O Ibrahim havia de recorrer a um guia da região, mas estaríamos juntos.
Passámos o fim de uma tarde até a noite ir alta, no Holliday Inn de Sarajevo, a discutir os pormenores, as ajudas, as redes de informação. Nunca admitimos poder estar a ser alvo de espionagem. Sabíamos que muitos mercenários da informação se faziam passar por escritores, jornalistas, humanitários...mas a nós? Que raio importávamos nós e a quem?
Uma ingenuidade fatal.
O plano era, se sobrevivêssemos a Sarajevo, cumprir os contratos respetivos, no Sudão e em Angola, e depois partir juntos para o Afeganistão.
O Miguel-Angel desconfiou. O Arturo, veterano de 16 guerras, já se via a escrever romances em Madrid, pantufinha calçada, o Pinto Amaral só me dizia: "sai daqui, João, não há futuro em Sarajevo, fizeste o melhor que podias..."
E o Jorge insistia, naquela mescla de espanhol e italiano, e eu e o Ibrahim caímos na história que nem uns patinhos. A guerra do Afeganistão só durou 8 anos. Mas quem fazia conta a anos e a tempos de guerra, quando o compasso da respiração era o que mais importava? Manter-se vivo?
Nunca chegou a haver Afeganistão para nós. Eu parti no velho jipe da BBC para Split e depois para Angola, onde sofri um atentado, mas safei-me. O Ibrahim, não. Disseram-me depois em Angola.
Foi o último pedaço de mim que deixei para ir buscar a Sarajevo, um dia, o meu sonho de paz na guerra.
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Sapatinho na mesquita
não há pé p'ra te calçar
voou numa alma aflita
que lia o Corão a chorar

domingo, 22 de abril de 2012

Artifício de amor em tempo de guerra

O pior que pode acontecer a uma alma distraída é a paixão. Amor em tempo de guerra é mais difícil ainda. Não perguntamos, um ao outro, o que vais fazer amanhã, já que não podes vir ter comigo. Perguntamos: vais a Dobrijna com civis, jornalistas ou só com o teu fixer?
E ele, olha-me apaixonado e assegura-me, com beijinhos: eu volto, descansa....mas tu não vais sair, está bem?
Claro que vou, claro que estou aqui para fazer reportagens...mas....verdade verdade, eu não quero perder o meu conforto, o berbere mais lindo do mundo que todos tentaram matar, no Cairo e em Sarajevo. Dou-lhe uns beijinhos arrepenicados pela cicatriz fora, desde o ombro esquerdo ao antebraço até ao pulso, o braço que segura a câmara e que alguém tentou desfazer a tiros.
Sinto-me a pessoa mais desejada do mundo. Quando começou o carrocel diário dos fugitivos para a cave, com almofadas, não fomos. Eu, aliás, não conheço nenhum abrigo, não estive em nenhum...
A minha históra de amor em tempo de guerra não podia ter sido mais bonita, tínhamos os corredores para nós e as casas de banho da CNN, que tinham garrafinhas de água, o tal precioso líquido a que, alguns não davam importância. Lavávamo-nos um ao outro como se fossemos os guardiães da água. E redistribuiamo-la a seguir.
O Ibraihm era o primeiro não ocidental que eu conhecia no sentido bíblico. Não havia nada que eu não gostasse nele, como profissional, amigo, irmão, amante.
Acabamos por nos sentir os donos dos corredores do efifício da TV bósnia, bombardeado continuamente.
Um dia, muito abraçados, retirámos as proteções de uma janela e ficámos a ver as explosões. Como quem vê fogo de artifício. E de repente, uma enorme trovoada criou um tal fait divers que todas as frentes em guerra começaram a responder ao que achavam que era provocação dos outros. Uma louca provocação natural de relâmpagos e trovoada. Nem os guerreiros assassinos estavam prontos para isso.
Eu e o Ibrahim ríamos à gargalhada. Cada trovoada, antes da resposta com as armas, dava direito a mais beijinhos
Foi o bombardeamento mais surrealista da minha vida.

sábado, 21 de abril de 2012

Frio durante o cerco

O frio. Nos mais recondidos espaços da mente, lá estava ele a interferir com as minhas reportagens. O Rodrigues dos Santos comentaria mais tarde, nas suas "Crónicas de Guerra", que eu naquela altura, estava muito sensível ao frio e lembrava-o nos "vivos que fazia", ou nas crónicas pelo telefone.
Naquele dia em que acordei às 7 da manhã, estremunhada, no escritório em frente ao da EBU /tranmissões, com o pessoal todo a chegar coma as almofadas dos abrigos e eu a dormir como se nada tivesse sido, percebi que algo estava errado.
Quando deixamos de ouvir as explosões é porque deixamos de nos interessar, perdemos o medo e podemos, por isso mesmo, morrer a qualquer momento por deixar de tomar os cuidados básicos para sobreviver.
Ainda fiquei mais uns dias, mas percebi,naquele acordar soberbo, numa cama de campanha, com um cobertor militar e uma almofada, que o conforto não duraria muito tempo. A única vez que consegui juntar os três elementos, no cerco de Sarajevo. Faltava um pãozinho quente e um leitinho...mas não se pode ter tudo.
Antes de partir, sem saber como, anda havia de fazer algo com aquele técnico de câmara egípcio. Acabámos por sair os dois, com o câmara do Reverte, o Miguel Martinez, fazer uns shots, voltar e montar, foi um dia chato. Convidaram-me para comer no Holiday Inn e lá fui entrevistar gente gira, como foi o caso do jovem voluntário que levava uma cisterna de água e uma bala atravessou o seu capacete pela nuca sem o tocar. Desmaiou três horas e quando acordou, o maior amigo estava morto. Era um menino. Um bebé de 18 anos que queria salvar o mundo. Ele percebera, como eu ao princípo, que os blindados da ONU não paravam para socorrer civis.
E estava tanto frio.
Regressei à TV bósnia mas não cheguei ao meu escritório. Estavam todos nos abrigos e eu fiz o caminho do meu amigo da CNN até ao telhado. Repeti a senha, a LOZINKA... Abriram-me a porta e levaram-me para a torre de vigia. Foi uma noite violenta.
Na crónica deixei de ter assundo normal: "está muito frio e não há como recolher todos os mutilados que ficam pelo chão na sequências dos bombardeamentos."

Traiçõezinhas em guerra

O mal parecia estar enraizado nos cantos da cidade, em cada esquina, em cada ponto de mira para onde partiam balas contra civis que corriam, que tinham de sair à rua para encontrar os meios necessários à sobrevivência: água, pão, batatas, carvão...e, notícias.
Uns meses depois do início do cerco, já toda a gente desconfiava de toda a gente. Mas eu, nem depois da guerra da Croácia, de Angola, e de uns dias de horror na Bósnia, desconfiava de outra alma humana. Naif. Burra. Para mim, só havia bons e maus: os maus faziam a guerra e os bons sobreviviam e resistiam cultural e fisicamente. Os mais ou menos, por natureza, teriam de andar afastados de mim.
Tínhamos uma pool de informações, onde fazíamos o nosso depósito como se fosse sangue acabado de doar. Custava a vida de muita gente trazer a informação.
Houve um dia em que eu trazia um som que mais ninguém tinha. Apresentaram-me um jornalista japonês e pediram-me para lhe ceder o som e ele dar-me-ia umas imagens incríveis de Dobrinja. Desconfiei, não queria mesmo dar nada a alguém que não conhecia nem pertencia à pool. Mas havia um câmara-man berbere, um egípcio lindo,lourinho, de olhos azuis, exilado em Chipre, que trabalhava para a norte-americana ABC... parecia o Bem em pessoa, todos o escutávamos como a um Cristo, transmitia paz, e pediu para confiar nele, um companheiro da estrada. Eu fui naquele zum zum e entreguei o meu tesouro de sons de bombas e gritos e tudo o que precisamos para testemunhar um ataque e conferir as armas e munições usadas.

Nunca soube o nome daquel japonês: o Kori tinha-nos fotografado, de modo que, mais tarde alguém o identificará.
Claro que ao tentar carregar a imagem percebi que tinha recebido uma cassete virgem de um dos muitos aventureiros sem escrúpulos que sugava o trabalho dos jornalistas e o faziam ir para....lado nenhum ou apenas para o seu pais.
Por acaso, não tive problemas de mais quando gravei uma crónica: não me faltaram bombardeamentos ao vivo para atestar a verdade do que afirmava.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Guerras difíceis

Um dia, a Rádio Renascença quis fazer-me uma surpresa, sem perceber que seria a pior coisa a fazer a uma jornalista numa cidade cercada na guerra dos Balcãs. Eu enviei a minha crónica diária e, no fim, amavelmente, anunciaram-me que tinham a minha mãe e a minha filha em conferência, à espera, para falarem comigo. O pior de tudo é que, as minhas Martas, já tinham ouvido a crónica...
Raciocinei e tentei disfarçar e dizer que estava tudo bem, não me faltava nada, era um prazer saber das coisas da escola da minha filha. E não...não havia problema nenhum no sítio onde estava, no escritório de transmissões da EBU. A filha insistia para eu voltar deprepressa.
Eis se não quando começam os vidros a estilhaçar, as bombas a cortarem as comunicações, o pessoal aos gritos... eu nem tive tempo para sossegar a mãe e a filha, porque a ligação foi abaixo.
Há guerra difíceis e surpresas...não gosto.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

A rapidez das decisões

Houve uma tarde especialmente terrível, em Sarajevo. Uma tarde em que quatro miúdos irrequietos foram autorizados a sair um bocadinho das casas, que se tinham tornado refúgios com aparência de bunkers e restos de móveis queimados numa lata no meio das salas ou no forno aberto dos fogões das cozinhas...para aquecer. Brincavam quando foram apanhados pelos estilhaços da mesma explosão de granada de obus.
Reeencontrei-os, mais tarde, ao "passar" (fazer a contagem dos mortos do dia)bem...naquele local muito, muito frio, onde o odor nos gela as narinas e não nos livramos dele jamais.
Levaram-me à cantina dos franceses, na sede da missão da ONU, onde eu fui procurar um qualquer perfume para disfarçar o que se me tinha entranhado na pele. Só havia água de colónia barata, mas não me fiz rogada e untei o nariz e as narinas, o que me ajudou naquele espírito de "ir às compras".
Naquela altura eu vivia de trocas, saíra de Zagreb com medicamentos e cigarros, tinham-se acabado os negativos, o pessoal da televisão dava-me velhos rolos de filme, encontrados nos arquivos e eu tinha de pagar de algum modo.
No casão militar da UNPROFOR, além de rações francesas de combate, que nos deram (as melhores do mundo, asseguro) havia whisky Johnny Walker. Imediatamente, pensei que era o melhor para o pessoal médico e dos Media relaxar. À saída íamos (o Pinto Amaral, como sempre, era o índio das Descobertas)todos lampeiros a saír do edifício, quando rebenta o bombardeamento. Eu já estava do lado de fora. O capacete continuava a ser um belíssimo recipiente, desta vez para levar garrafas de whisky. O Pinto Amaral ainda estava a passar a porta e teve tempo de regressar ao interior.
Quando a artilharia inimiga disparava eu via uma luz para aí a 1200 metros...os sacos de areia estavam encostados á entrada e não havia, em meio segundo, hipótese de retroceder sem partir nada. A uns 300 metros, do lado esquerdo, estava um AV5 estacionado. Com rodas e espaço para eu mergulhar por baixo! E assim foi: pleno salto de gazela com um capacete nos braços a atirar-se e a rastejar para debaixo do AV5.
O bombardeamento parou e eu já ouvia as espanholadas do pessoal!!! Eh...eh...Juanita Camiñante, Johnny Walker, mira la imagen que haces de los reporteros"...ai que desgraça...a TVE estava a fazer um documentário sobre a sobrevivência dos jornalistas durante a cobertura do cerco de Sarajevo, e tinha-me filmado, de um canto do edifício, em pleno voo, a salvar um capacete cheio de garrafas como se fosse ouro, aterrando debaixo de um blindado da ONU.
Uma boa negociação impediu o escândalo.
Acreditem ou não, nunca bebi uma gota do que trouxe da chamada cantina dos franceses. Precisava mais de uma maca e de um cobertor. Como prémio, alguém, durante a noite, levou-me uma almofada ao cantinho do escritório onde, finalmente consegui dormir.
No dia seguinte estava tudo bem. Arturo Perez Reverte continuava a chamar-me Maria La Portuguesa. Eu detestava.Grrrr.

terça-feira, 17 de abril de 2012

A garagem

Por mero acaso, dei com a garagem de uns Heróis sem Tempo que faziam o indizível: ir, debaixo de fogo, às franjas da cidade de Sarajevo, procurar cadáveres e feridos graves. As carrinhas em que o faziam estavam pintadas com umas toscas cruzes e uns crescentes vermelhos (mas a organização Cruz Vermelha/Crescente Vermelho não tinha nada a ver com isto) e os motoristas - pelo menos aquele com quem falei e na carrinha do qual entrei - deviam alimentar-se a adrenalina e tabaco. Pelo chão havia uns recipientes com um líquido de cor duvidosa e uma esfregona já negra...
Como todos, naquela guerra, o homem de serviço era rádio-amador e assim sabia onde socorrer quem necessitava, nos piores momentos. Não fazia um torniquete, não fazia talas, conduzia. Colocava as pessoas dentro da viatura e conduzia o melhor e mais rápido que podia.
Naquele entardecer estava sozinho, as baixas neste conhecido contingente de "suicidas" tinha levado os outros. Não havia macas, nem oxigénio, nem médicos, nem enfermeiros. O cidadão ia "empilhar" o mais que pudesse dentro do veículo, num voo rasteirinho, levava a carga ao hospital e tentava chegar vivo à garagem. Quantos mais conseguisse transportar, quanto mais depressa os depositasse nas urgências do Kosova, mais depressa entraria na garagem para recomeçar o ciclo infernal.
Recebeu instuções enquanto falava comigo e empurrou-me para eu sair. Mostrei-lhe a câmara, implorei-lhe que me levasse para fotografar e gravar mas ele, impertubável, pôs-me fora da carrinha e sublinhou o perigo. Era algo que tinha de fazer sozinho.
Ainda bem que, naquele dia, alguém me disse NÃO.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Presos às peças de artilharia



Ao fim do dia, no Holliday Inn da cercada Sarajevo, Maria João Carvalho estava com ar satisfeito: tinha cumprido o dever, sobrevivido e estava de barriguinha cheia.

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O meu périplo na frente de guerra, uma montanha atrás das casas, foi tão intenso que fiquei convencida que se tinham passado meia de dúzia de dias. Mas não. O Zé Rodrigues dos Santos, quando me entrevistou, uns anos depois, para as suas Crónicas de Guerra percebeu que apenas tinham decorrido um ou dois dias.
Ainda não consigo contar tudo. Fiquei horrorizada por ver soldados amarrados aos postos de artilharia, por terem tentado desertar ou por receio do oficial que tivessem esse desejo. Entrevistei alguns, nas pausas e abriguei-me. Os meus dentes batiam, descompassadamente uns nos outros, a lama humedecera-me as botas, as calças, o corpo todo. A última ofensiva, ao anoitecer, foi muito complicada. Acho que desmaiei de fatiga, encostada à lagarta de um blindado. Um oficial mal encarado, acordou-me da letargia e apontou-me a direção da saída desse inferno. Corri até chegar à ponte romana, desta vez debaixo de fogo. Uma ou outra pessoa corria, num ou noutro sentido, sem me ver. Eu, esticava o dedo, implorava por uma boleia em inglês, alegava que era jornalista...
Uma eternidade depois, um velho Ford amarelo pálido, sujo e amolgado, fez chiar os travões à minha frente. "Televasi? " Sim, sim, sim!
Quando entrei no escritório da EBU alguém estava a empurrar a cassete para o maquinismo que ia enviar uma reportagem que focava a morte e desaparecimento de jornalistas em Sarajevo. Eu estava nessa reportagem, iam dar-me como desaparecida...atirei-me a correr e arranquei-a da máquina, invalidando a transmissão. Faltava-me o ar...a minha filha de 11 aninhos e a minha mãe não podiam ver aquilo, lá em Portugal... era um contrassenso, mas não podiam saber nada do que se passava comigo. Ninguém me chateou por invalidar a reportagem naquele momento. Eu tinha regressado viva e isso é que interessava. Como vinha de território comanche tive direito a convite para a ceia, no Holliday Inn de Sarajevo. Fiquei na mesa 25 - placa que levei para oferecer ao Carlos Serras Pereira e lhe entreguei no DN (para onde também estava a escrever).

domingo, 15 de abril de 2012

A Prova

Dois anos depois do início do cerco da cidade, os cidadãos estavam desconfiados. Quando os intelectuais, que me convidaram no teatro, me levaram para almoçar numa casa a poucos metros da ponte romana, não pensei que fosse para me pôr à prova antes de me arranjarem um passe para passar para o outro lado, o dos agressores da outra margem.
Qual o meu espanto quando entro numa sala cujas paredes pareciam debruçar-se sobre dois bancos corridos de madeira com uma mesa no meio, na vertical em relação à janela. No topo da mesa, de costas para a janela, colocaram o meu lugar.
Eu andava muito avessa às janelas. Tinha muita fome mas o estômago apertava-se como um nó, que fazia bater imenso o coração. No fundo, também não estávamos ali para comer.
Juntaram-se mais dois convivas, aos três iniciais, além de mim. No prato de cada um vieram dois tomates cereja e uma lula recheada.
E a casa estava gélida, o bafo do nosso ar quente via-se ao longe. O lauto repasto foi acompanhado de uma garrafa de uma mistela que devia querer ser whisky. E demorámos duas horas a comer.
Lembro-me que partia um quarto do tomate cereja (que nunca comera, até então), e saboreava-o duas ou três vezes no interior de todos os recantos da boca, antes do engulir. Bebia um copo da mistela, ficava meio enjoada e enganava o medo que me arrepiava toda a coluna dorsal, a cada tiro que saía dos andares de cima para a frente de guerra, no outro lado da ponte.
Todos tinham acabado de comer e estavam estupefactos por eu não ter exigido mudar de lugar, e também por não ter passado de um terço da lula, o melhor de tudo, que os outros tinham comido em priimeiro lugar.
Em russo, alguém deu a ordem que me foi transmitida em inglês: "podes passar para o banco, para o nosso lado".
Brindámos, festejámos...acho que estive sempre muito desconfiada, era a minha vez. Mas depois daquela mistela de grog feito em casa, já me davam palmadas nas costas e repetiam que eu ia fazer a "história" da minha vida, um scoop.
O que é estranho é que não me lembro do sabor da lula recheada. Mas fiquei fã dos tomates cereja.
Fui-me embora com o cabeça de casal dos Profs catedráticos que me tinham convidado. Do outro lado da ponte esperavam-me os soldados. Lembro-me bem que não houve um tiro durante a minha passagem.



Maria João Carvalho fotografa por Pedro Caiado

sábado, 14 de abril de 2012

Índia

Tinha tido uma imensa vontade de responder, naquele recenseamento de Lisboa dos anos 80 (demorou quase uma década até aos 90), que a minha religião era a judaica. Por nada, por rebeldia e para me colocar do lado de uma minoria. Eu era mãe solteira e, portanto, de uma minoria, não recenseada na época, e muito estigmatizada.
Jesus, que tudo compreende, e os meus Santos católicos e não, Buda e e os que defendem o Bem não iam julgar-me...mas, no fim de tudo, respondi: sou católica.O meu irmão Zé, soube eu mais tarde, na nossa casa da Lapa/Santos-o-Velho, teve a coragem e respondeu naquele censos a inverdade: judeu. E como fiquei contente! Ele era o meu Zorro, o Chefe Índio, o líder da revolta.
Não sei bem explicar a razão desta necessidade de contrariar os recenseamentos. É algo inato. O meu irmão era sempre o índio e, só num teatro de jardim escola aparece a fazer de comboy. Eu era como ele. Queríamos ser os Apaches honrados e dignos que morriam a defender o povo.
Com Chico Buarque ou Elis Regina - a minha versão preferida, a dois...
Diz o provérbio turco: cuidado com o que desejas; pode realizar-se.

No serão, depois da peça a que assisti com os "sarajevianos", durante o cerco que cobri, tive de ficar com eles. Não havia como sair contra as miras noturnas dos bem equipados "caçadores de cabeças".
Alguém, do grupo de intelectuais que mais respeito no mundo, trouxe uma pequenina travessa de salada russa (os russos chamam-lhe salada francesa), sem azeite ou atum ou peixe ou carne, para mais de 13 que estavam nessa ceia - metade afastou-se por não haver comida....restaram seis ou sete.

Por gentileza, comi três quadradinhos de batata e umas duas ervilhas.
Estava a partilhar uma refeição com sobreviventes de todos os grupos étnicos que não estavam de visita nem a cobrir guerras alheias. Eu vinha rosada e gordinha, com pouco mais de 30 anos viçosos e cheios de saúde. Os escritores, atores e amigos que ali estavam, passavam fome desde o início do cerco, quase dois anos antes.
Deixei-os a falar depois, quando me encolhi (tão satisfeita estava por me aceitarem como um deles!) que adormeci até muito de manhã...muito alta...estavam apenas três pessoas, em silêncio, à espera que eu acordasse, no dia seguinte. Uma professora de Matemática, um Prof. russo de Literatura e um "escritor" que falava inglês manhoso. Representavam as três etnias e convidaram-me para almoçar.
Íamos sair.
A cave onde tinha assistido a uma das grandes "perfomances" da minha vida, estava gelada e cheirava a fumo requentado de dia seguinte. As cadeiras estavam fora de lugar, desasjustadas do que eu queria gravar da véspera, de uma audiência subjugada e faminta de cultura e glória, de momentos de requinte.
Quando me levantei e os segui, tive a certeza de ser índia. Naquele momento, ei, com a memória do meu irmão Zé Mau ia conhecer os índios na sua aldeia.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Resistência

post dedicado a Miguel Borges, fabuloso protagonista de "A Morte de Danton", em cena no Teatro Dona Maria II, Lisboa


Cantar nos degraus da televisão bósnia, quando todos os outros dormiam na cave (e levavam as almofadas!) durante os bombardeamentos noturnos na Sarajevo cercada, valeu-me um convite para o teatro (com Zoran Becic).
Não um convite qualquer, mas o teatro dos resistentes, aquele a que só os "sarajevianos" tinham acesso. Na tarde seguinte, como prometido, foram buscar-me às traseiras da televisão. No centro da cidade, passámos a esquina do café onde paravam todos os milicianos à civil, espiões e intelectuais, e torneámos a parede escavacada para um pátio, entrando por um labirinto de passagens muradas, com a cabeça baixa e em passo de corrida, para evitar os tiros das armas com objetivas mortais que se fixavam em nós.
Hoje, sexta-feira 13, lembro que tive sorte. Muita sorte. Foi estranho assistir a uma peça com grandes atores a falarem de sobrevivência, quando somos sobreviventes.

A chegada dos atores e do público foi muito difícil.
A adrelina e o medo levaram-me ao segundo andar para ir à casa de banho, antes do início da peça.
Tinham-me avisado: a janela dava para as janelas dos 'snipers', mesmo em frente. Não havia adesivos opacos nos vidros, nenhuma proteção além de uma tinta quase transparente, meio gasta, que piorava o efeito das sombras naquele fim de tarde. A porta do minúsculo cubículo dava para a janela. Sentei-me, como uma mola, no canto entre a janela e a sanita. Como levantar a cabeça, sabendo que, do outro lado, estava um caçador e eu era o alvo? Como morrer, com dignidade, na casa de banho do teatro? Como gritar por socorro quando todos estavam na cave?
Também não teria voz...a sanita de porcelana parecia um enorme pescoço branco de um perú, prestes a ser cortado para a ceia natalícia. Eu...era apenas o copo de aguardente que alguém usaria para o sangrar.
Lembrei-me dos diretores de teatro atingidos antes, para não levarem aquela peça a público. Um já morto, o outro, numa cadeira de rodas, e o terceiro, o que me recebeu...fiz, naquele momento a frase do posterior poema que incluia: "a luta poética de escritores/ muitos, a quem os dedos já roubaram/para que, da morte, não sejam delatores".
De um salto, num ápice de fúria e desafio, fiz o que tinha a fazer e desci as escadas numa corrida, quase sem respirar. A peça teve início uns minutos depois. Eu chorei baixinho, durante uns minutos. Só uma escritora muçulmana muito querida, que se chamava Ferida, me limpou a face e me apertou o ombro em sinal de compreensão. O grande Zoran catapultou-me para outra realidade: a da sobrevivência cultural no meio do conflito. Mergulhei de tal modo que, no final, já era um deles, um bósnio ligado a todas as etnias.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Mais valia ocidental à espera do pingo de água

Os meus amigos não acharam que eu deveria ter vergonha por me proteger com material militar. Acolheram o capacete como o melhor dos recipientes de recolha assegurada de água dos prédios bombardeados. Receberam-me como a proprietária da uma mais valia, retirando-me a propriedade da mais valia, no mesmo momento. E eu contente.

Com o colete anti-fragmentos foi diferente, deixámo-lo na televisão porque não poderíamos emprestar a uma das crianças ou mulheres, a um dos escritores ou a um dos resistentes. Fomos todos para a rua sem proteção. Era o objetivo: que eu me sentisse nua como todos os habitantes de Sarajevo. Assim, fomos para a ruína de um prédio, na fila da cave, e eu era a sexta pessoa. Deu para verificar os recipientes dos que estavam à minha frente. Havia uma garrafa de plástico com um furo de bala escondido a adesivo de garagem ou de canalizações.

Eu cogitava: esta água chega toda contaminada a estas ruínas, e nem os recipientes podemos ter esterilizados? Esterilizados? Ah...Ah...dei comigo a rir alto e os outros a olhar para trás como se os executasse...quase....uma rajada de Ak 47 varreu a parede exterior do prédio em ruínas
De cócoras, agarrei a criança da minha frente e mostrei-lhe o capacete, fui buscar os pingos lentérrimos que se enferrujavem só de pensar em cair... mas quando passei o meu capacete àquela criança, eu estava pronta para discutir política com os assassinos de serviço em Sarajevo. Tive direito a um chefe de milícia e alguns milicianos executantes, mas o ato valeu-me a entrevista.

quarta-feira, 11 de abril de 2012

A "falsa" do subconsciente

Escarafunchar num sotão de memórias, fechado há 20 anos, é, no mínimo, estranho. Nos Açores chamamos "falsa" ao sotão.
A minha falsa tinha uma memória fictícia, daquelas com que justificamos algo muito estúpido, que a consciência não aceita.
Então, assim de repente, descobri que no post "Welcome to Sarajevo", cometi uma imprecisão, pura e simplesmente porque não sabia, tinha enterrado a "coisa".
E "a coisa" é que, eu não levei apenas a roupa do corpo, medicamentos e material fotográfico para Sarajevo. Eu levava vestido, por cima da tal blusa de seda selvagem cor de estanho e por baixo do meu casaco da US Navy, um colete anti-fragmentos emprestado pela Marinha portuguesa e um capacete duplo que eu devia ter pintado de uma cor discreta.
Burra, como nunca tinha tido um capacete para pintar, só meu e só para mim, pintei-o de branco. Achei que tinha a ver com paz e era giro, no meio da guerra...
Mas havia uma norma que tinha de cumprir, que era escrever o grupo sanguínio no capacete. Imaginem, escrevi a negro, redondinho...ORH+ para dissipar qualquer dúvida.
Só depois da obra pronta, verifiquei o erro que me podia custar a vida e já não podia emendar: o meu capacete era o melhor alvo, a meio quilómetro, que um sniper de domingo podia encontrar! Até um vesgo me veria a brilhar no meio da multidão na Sniper Avenue, porque, ainda por cima, éramos obrigados (os jornalistas) a identificarmo-nos como Press, de forma a ser vistos e notados bem de longe.
Buáaaaaaa!!!
Eu estava presa a um redemoinho de que não me podia libertar. O colete pesava 15 kg -era anti fragmentos e não apenas anti-bala, era um Fórmula Um dos coletes da Marinha e o capacete, de 2 quilos, bem reforçado, pesava mais do que a minha vida, depois de dois ou três dias de fome, a alimentar-me de adrenalina e cheiro a sangue.
Quando fiz a minha primeira reportagem entre civis, em Sarajevo, por vergonha, não levei proteção nem fui um alvo apelativo.
Mas coloquei a "gafe" na falsa... onde ficou até hoje.

terça-feira, 10 de abril de 2012

Quem é quem numa guerra urbana


Nem queria acreditar que, naquele sangrento ano de 1994, no escritório de transmissões da EBU na tv bósnia em Sarajevo, cheio de gente, um homem estava alheado de tudo a afiar e verificar a lâmina da sua faca do mato. E, mea culpa, confesso que também só reparei nele quando procurei o mapa da cidade sitiada que me indicaram estar "naquela" parede.
Quem é, quem não é... "CNN", disse um dos fixer's bósnios com ar de desprezo... "veio para afiar a faca".
Os imensos escritórios tomados pelos americanos (espaço da antiga direção) ficavam na ala oposta dos nossos humildes e minúsculos aposentos europeus.
Era irónico que o técnico que instalou as antenas para as perguntas ao surpreendido Clinton, no telhado, fosse o mesmo que precisava refugiar-se para afiar, estranha e silenciosamente, a sua faca.
Quando consegui obter algumas respostas, ele não foi muito eloquente, apesar do inglês texano: "- Como raio pensas que instalo cabos mais depressa que me chega a bala?"
Depois, levou-me ao telhado. Tinha um passe que balbuciou aos guardas da porta para o exterior e, imediatamente, corremos para uma das torres/chaminés do centro. O vigia estava fortemente armado e aconselhou-me a partir nos 5 minutos seguintes. Fui-me embora sozinha e fechei a porta das escadas de serviço no momento em que recomeçou a troca de tiros.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

80 dólares para dormir na banheira

Quando me levaram ao Holiday Inn de Sarajevo, durante o cerco e no próprio dia da minha chegada, tive de correr da viatura para a entrada da cozinha debaixo do fogo dos snipers. Não havia muito espaço para ziguezagues. Rapidamente cheguei a um enorme hall de entrada com bar ao centro e um grupo de gente surrealista a fazer os negócios possíveis no meio da guerra. A rececionista resolveu o meu problema logo ali: 80 dólares num quarto de segundo andar, do qual não podia passar para cima, por causa dos bombardeamentos noturnos.
Era, no entanto, uma zona que todos os beligerantes tinham prometido respeitar.
Uns dias depois, percebi porque é que ninguém respeitava.
Quando os jornalistas, escritores, e fixers se retiravam, os mais estranhos notívagos subiam aos andares mais altos e atiravam, do hotel, sobre os diferentes alvos.
Nunca percebi quem é que nos vendia: a raia miúda da receção ou alguma ONG... mas os mercenários entravam e o fogo começava. Nós só ouvíamos as granadas que nos explodiam nos quartos, em resposta. Eu dormia na banheira, que era pequena mas, ao menos, o quarto de banho ainda tinha uma parede e estava uns metros afastado da janela para o exterior.
Incapaz de conciliar o sono, fui à despedida dos jornalistas italianos que partiam de Sarajevo no dia seguinte. Éramos um grupo jeitoso, risonho, apesar do cansaço dos que se iam embora e da minha ansiedade em querer saber como desenvencilhar-me, como partilhar um carro, um motorista, inscrever-me na "international pool" (todos contribuíamos e servíamo-nos das imagens e sons)...
Eis que o jovem escritor grego, George, aparece aos gritos "Maria, Maria! Explodiram com o teu quarto!!!"
Acabara de chegar e começavam os mal entendidos. "- Não me chames Maria, George, Maria João é um nome composto, como Maria José, Maria Juan, Johnny...a propósito, vai um Johnny Walker?"
"- Não estás a perceber - ripostava o infeliz - explodiu uma granada ao meu lado, estou no quarto a seguir, anda ver, traz a chave!!!"
Tremia muito, o pobre do rapaz. Fomos todos, em excursão, atrás dele. Realmente não havia nada direito e até a tela que devia cobrir integralmente os vidros estava no chão da entrada, mas a granada não explodira ali. Fomos então ao quarto contíguo, imediatamente antes do meu, que tinha a porta entreaberta...e lá estava a explicação: a granada de obus entrara junto à parede que separava os quartos, mas não no lado interior da minha.




Os dois quartos ficaram em muito mau estado e achei que era um belíssimo aviso para terminar as despedidas e continuar a noite na banheira.
Mesmo assim, uns dias depois mudei-me para um escritório da tv bósnia a convite de um extraordinário grupo ibérico.

domingo, 8 de abril de 2012

Ódio...20 anos depois

Tal como ficou demonstrado na reportagem da euronews ,a Bósnia "desalcança" a paz.
A propósito de uma história de que falei no DN de há uns anos e no livro "da guerra e outros poemas", Neven S., um nacionalista de etnia croata tentou arrasar-nos no fb, a mim e a uma bósnia exilada no Canadá. Já o bloqueámos e participámos dele. No entanto, é assim que pode eclodir, de novo, a guerra: pela negação dos factos.
Segundo esse "facho" que se exibe numa foto em calções, a abraçar tigres bebé, a comunidade judaica de Sarajevo saiu, integralmente, de autocarro de Sarajevo, em 92. Foram todos usufruir de uma bela e luxuosa vida em Telavive.
Estranho imenso que este croata mantenha o mesmo comportamento negativista do chefe muçulmano da comunidade bósnia. Foi uma surpresa, para mim, estarem ainda tão atiçados contra os sefarditas.
Não tenho aqui o DN para reproduzir, mas deixo-vos o poema em que foco a questão. Vivia menos de metade da comunidade judaica de Sarajevo quando lá estive, em 93, creio. Muitos partiram mas outros foram mortos. Negá-lo é admitir nacionalismos e crimes de guerra que era tempo de estarem resolvidos. ´


No dia 26 de agosto de 1995 escrevi:

Há mil dias que Sarajevo chora
e ao mundo implora um gesto seu

como se os fósseis, de repente,
desatassem a viver
e as núvens fizessem de fofo ninho
para os bebés dormirem
e os deuses pudesse comer à nossa mesa
e com as nossas lágrimas na garganta

Há mil dias e mil noites que se ignora
que há espanto na morte
na sorte que Sarajevo implora
em cada minuto que sofre

Aniversário do luto europeu
do frio que esventra campas nos estádios
do sacrifício do povo judeu
que mais uma vez
selou todos os lábios

Muçulmanos, sérvios, croatas
todos clamam estandartes e cores várias
e os últimos judeus de Sarajevo
que falam, quem diria, português
morrem silenciosos como viveram
estigmatizados
sem lugar nem vez

Mil dias e mil noites de clamor
e neve vermelha nos mercados
e fantasmas de fogo e de horror
e ódios de futuros já inválidos
e lenha a arder de antigos móveis
lares em pedaços como as pessoas
que dos mil e quinhentos meninos mortos
recordam apenas as coisas boas

Mil dias e mil noites de teatro
de luta poética de escritores
muitos a quem os dedos já roubaram
para que da morte não sejam delatores

Mil manhãs absurdas
mil noites trágicas
em que turcas culturas mágicas
na velha baixa muçulmana
na biblioteca e no museu
arderam depois de bombardeadas

E se nos buracos das granadas
dos obuses que atravessaram
as paredes de meio metro do Parlamento
viver algum duende mais atento
o povo bósnio espera que lhe guarde
a alma e o talento dos seus músicos
para que, quem lá sobreviva
recorde o que hoje não querem que se viva

há mil dias e há mil noites.

sábado, 7 de abril de 2012

Porque é que ainda tenho um pé?

A Páscoa, para mim, não é feliz. É dolorosa como a Via Sacra. De há uns anos para cá, tirando o domingo que passo com amigos cristãos ortodoxos (valorizam muito a Páscoa que quero contrariar) e as amêndoas ou chocolates que os camaradas de trabalho teimam em partilhar, não compreendo. Lembro, vagamente, de ser um tempo feliz em que levávamos para casa um gaiato de entre os 12 a quem o padre lavava os pés na cerimónia da Missa. Isso passou. Não havia pobres ou não havia mais padres ou gaiatos...havia uma enorme vergonha da partilha de dificuldades. Seria no Natal? Avante...gosto do Natal, por isso baralho as recordações, mas não gosto da Páscoa. Duvido de ressureições milagrosas mas defendo-as como uma esfomeada de milagres. Sou a contradição viva de todas as dúvidas. No dia 9 de abril de 2004, aconteceu-me ter a resposta à questão que coloquei a Deus em 9 de abril de 1994.
Porque é que eu tinha, ainda, o pé?
Os outros... não.

Começou tudo com o bombardeamento do parlamento de Sarajevo e eu, no jardim em frente, com cerca de 15 mutilados em estado de choque.
Das próprias camisas, rasguei pedaços de tecido para, com pauzinhos que vagamente apanhava pelo chão, fazer torniquetes. Interrompi-me várias vezes aos gritos para os AV5 blindados da ONU que passavam na rua. Eles não paravam. Desde a minha chegada que eu sabia que não recolhiam civis.
Parou o novo blindado da BBC e os camaradas dividiram sete dos oito feridos de morte comigo.
Até que parou um bósnio corajoso, numa camioneta de caixa aberta. Já não ajudei a carregar os feridos, estava exausta. Fui depositada com eles no Hospital de Kosovo, em Sarajevo. Mas o sangue não era meu. Eu não tinha pauzinho em nenhum tornozelo, pulso ou antebraço. Chegando, desajudei. Fumei uns 30 cigarros enquanto esperei a discussão com o chefe das urgências...
"- Aquela mulher vai ficar sem os dois braços e um pé....porque lhe corta o outro? E aquela outra, amputa-lhe um terceiro membro?!"
E ele, agastado, pedia-me mais um cigarro e respondia com uma pergunta: "deixo morrer as dezenas que estão a esvair-se em sangue, à minha espera?"
O Pinto Amaral e o Dinis chegaram para a reportagem na morgue (ao lado das urgências) e levaram-me com eles.
À chegada à televisão, comprei um litro de água por 20 dólares. A água mais cara jamais comprada! Venderam-ma num garrafão de plástico serrado ao meio. Levei-a, preciosamente, para o duche da cantina da TV bósnia, onde não havia água há muito tempo. Não sabia se havia de tirar a camisa e esfregar o sangue ou se havia de passar a água por cima. Era uma camisa cor de estanho em seda selvagem (usava-a sob o colete e o casaco militarista), secaria rapidamente e a cor ficaria esbatida...por cima, o colete de mil bolsos que não lavaria. Pendurei-o no varão da cortina, para dar sorte, meio teso meio triste e tudo menos "consorte"...
Depois de despejar água por cima da cabeça, percebi que tinha de tirar a camisa e esfregá-la com algum sabão do corpo. Desisti do sabão e esfreguei a camisa enquanto que, com o pé, "ajudava" a água ensanguentada a chegar ao ralo. Olhei os meus dedos do pé...dedos. Porque é que eu tinha escapado com dedos? Com pé? E os outros a quem estavam a cortar os tendões....ainda?! As explosões abalavam o edifício e já não havia mais ninguém a mandar-me para a cave, para o abrigo.
Depois da última gota do precioso líquido, vesti o colete, agarrei na camisa e no material e botas, para recolher ao escritório da equipa espanhola que me recolheu na Tv bósnia. Não estava ninguém. Estalavam ecos que abalavam as paredes. Encolhi-me num canto para adormecer, nesse dia em que perdera o medo e me aproximara da morte.
Evidentemente, não dormi. Fui para as escadas entre o primeiro andar e a entrada. Estavam lá dois técnicos bósnios, a cantar. Ofereceram-me o grog deles e eu, que não conseguia chorar nem agradecer, cantei-lhes "Os teus olhos, negros negros, são gentios, são gentios da Guiné".
A resposta à minha questão filosófica tardou, mas foi violenta...

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Welcome to Sarajevo

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Todos os repórteres do mundo queriam avião para Sarajevo. Mas, desde que os sérvios tinham atingido um avião italiano da coligação, os voos de Zagreb para Sarajevo estavam suspensos.
Eu almoçava com dois oficiais portugueses que estavam em representação europeia na troika, em Zagreb, e não conseguiram evitar as exclamações de pesar quando souberam que o Capitão Santana, a chefiar as operações no aeroporto da capital bósnia, fora atingido. Deram-me a dica. Zarpei imediatamente para o aeroporto, que ficava perto. Uma fila de dezenas de jornalistas atropelava-se ao balcão. Do lado direito, bem ao fundo, uma pequena porta entreaberta deixava vislumbrar o movimento na placa. Obriguei o jovem Philipe, o meu fixer (tradutor/guia/arranja tudo) a ficar no átrio e esgueirei-me, fechando a porta atrás de mim.
A uns 800 metros estava o almejado avião alemão de todos os desejos, da NATO.
Nos hangares contíguos do aeroporto, os carregadores de mantimentos da ONU colocavam paletes de rações e toda a espécie de mantimentos nos "diabos". Uns rapazes simpáticos, direitinha aos quais me dirigi, com um sorriso atrevido. Era só eu, com uma mochilita pequenina com medicamentos para doentes de hemodiálise e cigarros para os médicos e para quem precisasse, mala Nikon completa, rolos, pilhas, gravadores.
Pedi-lhes boleia e eles disseram que não. Roubei o boné da ONU da cabeça de um e dirigi-me, em passo apressado, até chegar à frente do gigantesco nariz do avião e olhar o comandante nos olhos. Era uma mulher sozinha, não passava disso e acho que não me deram importância.
Ajoelhei-me e estiquei o dedo a pedir boleia, com ar meio desesperado, meio desafiador.
Já tinha os rapazes todos atrás de mim, com o carregamento junto, mas a boleia estava assegurada.
Com a roupa do corpo e material para uns dias, fui a única jornalista a partir para Sarajevo, no dia em que o glorioso Capitão Santana foi ferido pelos fragmentos de granadas de obus. Pedi informações ao comandante alemão que me disse que o capitão português, entretanto, já tinha retirado os estilhaços e regressado ao posto, que continuava sob ataque da avião sérvia.
Desde o início do voo, a tensão instalou-se na cabine. Antes de entrarmos no perímetro aéreo da cidade, os caças de Belgrado iniciaram uma dança assustadora em nosso redor. Perguntei, ingénua, pelos páraquedas. Ofereci-me, gentil, para os ir buscar.
E o navegador, fleumático, de cachimbo na boca, respondeu-me: nestes cargueiros não temos páraquedas.
Muitos minutos depois, carregadíssimos de probabilidades trágicas, o comandante percebeu e explicou em voz alta que estávamos apenas a ser escoltados e intimidados, para sabermos que seríamos abatidos quando a "Federação" quisesse.
Mal aterrámos reiniciaram-se os bombardeamentos da placa, a descarga debaixo de tiros e a transferência da tripulação para os AV5 blindados da UNPROFOR - United Nations Protection Force, ou Forpronu, conforme os dias...
Mas "como os blindados da ONU não transportam civis" - naquela missão era assim - eu fui deixada debaixo de fogo, aos saltos como um coelho, obrigada a procurar refúgio como um rato.
Pedi aos soldados, que ripostavam, para chamarem o capitão Santana, mas eles não tiveram grande possibilidade de o fazer.
Fui sozinha para a porta do aeroporto que dava para o exterior. Um fotojornalista da CNN, David Rust, escondido atrás de um carro estacionado do lado oposto espreitava, com capacete, e acenava-me. Mas sempre que tentava comunicar comigo, um sniper atirava, ora em direção a mim, ora em direção a ele.
Claro que desistiu e eu regressei para junto dos soldados que gesticulavam, já com o Capitão Santana. Furioso, o herói quis mandar-me de volta, no mesmo avião, para Zagreb.
Eu? Nem pensar. E, graças a Deus, os bombardeamentos invalidavam qualquer tentativa para levantar voo.
Quanto a mim, não fazia ideia onde tinha aterrado. Longe ou perto do centro? Como deslocar-me? Nem mapa tinha!
Sentei-me de pernas cruzadas no chão, no meio daqueles militares tão assustados como eu, de todas as nacionalidades, mas com capacete azul nas cabeças. Lembrei-me, vagamente, de ainda ter um boné, um boné do mesmo azul clarinho que me permitiu a piada, a graça para obter a boleia.
O capitão não teve como me manter refém. Meteu-me mesmo num blindado e aproveitou para ir fazer o relatório à missão na sede da UNPROFOR em Sarajevo. E aí sim, fui largada no corredor da entrada e obrigada a procurar uma saída sozinha.
Procurei a proteção de placas metálicas no exterior, debaixo de fogo. Depois foi fácil. Tinha acabado de entrar no exterior da sede de transmissões da BBC e alguém me deu as boas vindas ao inferno, em inglês: Welcome to Sarajevo.


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quinta-feira, 5 de abril de 2012

O francês que, em Saravejo, conhecia o Mendonça do Dakar



O jovem francês, do qual tenho o nome escrito nos diários de guerra, mas não me lembro, chegou a Sarajevo com um jipe blindado para entregar à BBC. Trazia-o da Alemanha e tinha de regressar com o velho jipe inglês esburacado, não blindado, que tinha estado ao uso até então.
Nessa noite em que chegou, juntou-se a nós na sala de jantar do Holiday Inn de Sarajevo, na pausa das explosões da noite, que servia para programar as saídas do dia seguinte e partilhar viaturas e outros meios.



Quando percebeu que eu era portuguesa perguntou-me se conhecia o Zé, um motard genial com quem tinha feito o Dakar e que, depois de assaltado, foi num camião de boleia e fazia reportagens para um jornal diário a dizer bem dos ladrões tuaregues. Essa era fácil! Um dos meus Heróis sem Tempo? Claro que era o Mendonça, que estoirou com os joelhos em vários Dakar (antes de passar ao parapente) e sempre achou que os tuaregues tinham sido muito simpáticos em deixar-lhe uma parabólica e um telefone. Foi o início de uma bela que o "Público" aproveitou, fazendo do aventureiro o escriba de serviço.
E agora, em Sarajevo, eu conhecia outro herói da mesma craveira...
Acabei por partir de Sarajevo com ele, muito tempo depois, no jipe esburacado da BBC. Depois das posições dos chetnick, tínhamos mais umas balas crivadas no tablier. Quando passámos o último check point, fotografámo-nos mutuamente, para provarmos a nós mesmos que estávamos inteiros, para sentirmos que estávamos vivos. Ele deixou-me em Split e apanhei uma boleia militar para Zagreb. Há quase duas décadas.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Sentença de morte

Em torno do Teatro, no centro de Sarajevo, cidade cercada há 20 anos, passavam-se coisas estranhas. Num dos raros momentos de pausa de explosões, tentei comunicar com um chefe de milícia de etnia muçulmana. Era enorme como um herói das "mangas": cabelo negro a passar dos ombros, corpulento e (com o passar dos anos ainda mais) assustador. Dois soldados interromperam-nos. Entre eles, arrastavam um terceiro e balbuciaram algo que não compreendi. Entendi apenas a resposta: um gesto cortante como uma guilhotina de mão fechada ao exterior, com os dedos a fazerem vibrar o ar rumo ao centro do pescoço.
Foi a primeira sentença à morte a que assisti.
Alegadamente era um desertor e por isso tinha de ser executado: porque "na guerra só há duas espécies de homens, os que têm medo e os mentirosos". E porque temos todos de vencer os nossos medos, utilizei essa frase na abertura do meu livro "da guerra e outros poemas".

terça-feira, 3 de abril de 2012

Sarajevo

No dia 6 de abril de há 20 anos teve início o cerco de Sarajevo. Eu podia apenas vestir a t-shirt comprada que afirma "I survived Sarajevo... twice". Mas não. Eu estive lá. E não tenho grandes sobressaltos ao revisualizar imagens com som das explosões, não. O meu problema sempre foi com os iatos, o silêncio. Quatro cadáveres de crianças apanhadas por uma granada de obus quando brincavam num túnel. Por exemplo. A pausa do médico a quem dei cigarros e perguntei porque não salvava um pé e ia amputar três membros a uma idosa. O escândalo no olhar dele: "e deixo morrer os outros mutilados para salvar o pé da velha?" Silêncio. O meu, muito envergonhado.
Este fim de semana vamos encontrar-nos, os sobrevivos de Sarajevo, repórteres de guerra e escritores, atores da defesa da cultura durante o atroz sacrifício do bem comum... vamos lembrar o incêndio na biblioteca milenar, o estatelar das granadas nos muros de meio metro em frente ao parlamento e os torniquetes que éramos obrigados a fazer das camisas rasgadas enquanto os carros da UNPROFOR passavem sem parar como gente doida - "a ONU não permite o socorro a civis, neste mandato"...ainda ecoa na minha cabeça. E os bósnios atreviam-se a sair de casa, durante os bombardeamentos, e a trazer veículos para levarmos aqueles corpos meio desfeitos ao Kosova Hospital. Os médicos, enfermeiros e voluntários, eram alvejados quando nos ajudavam a retirar aquela gente dos atrelados. E a nossa ausência era fatalmente justificada com "menos ou mais um jornalista"! Neste caso tenho de admitir na minha categoria dos Heróis sem Tempo todos os civis de Sarajevo, de todas as etnias, que ajudaram a salvar vidas. Bem Hajam.
Por mim, os anos de sofrimento por ainda ter pernas, levaram-me quase a perder uma. Até que compreendi o meu dever de testemunho e a minha enorme dívida para com os que me desviaram da minha morte ou morreram em vez de mim, com as balas e granadas que me foram destinadas. Gracias, Ortega, Martinez. Salam Alekum, Ibhraim. Arigato, Kori. Obrigada, Capitão Santana e Pinto Amaral... e tantos outros. E obrigada a todos os atores que levaram à cena durante o cerco a peça "Abrigo e Resistência" e me convidaram para sobreviver com eles durante dois dias. Gracias a La Vida, como diria Joan Baez.

Leques em couro - artesanato de Felgueiras