João, como me obrigaste a recordar nostalgias antigas à custa de
lágrimas, ofereço-te uma receita de andarilhos, quadrilheiros,
contrabandistas e outros animais agrestes das serras do Minho -
lembra-te do que dizia o Pedro Homem de Melo, pela voz da Amália
Rodrigues : «Fui morrer a Gondarém, terra de contrabandistas, a farda
dos bandoleiros não consinto que ma vistas!».
E precisamente porque ali toda a gente é individualista, porque todos
sabem sobreviver, porque todos têm uma ligação telúrica inata, sabem
fazer uma coisa:
Primeiro, como acho que já te disse uma vez, arranjam uma telha de
meia cana, «pedida» emprestada seja a que telhado fôr;
òsdepois, tirarmdo bolso uma morcela de Santa Marinha do Zêzere, com
cebola e alho estremenho, que dura seis meses metida num tamanco, como
so que comprei na feira de Espinho; a seguir é só tapar as pontas da
telha com galhas de oliveira roubada acima do pó da estrada - sabes
que os carros poluem tudo, né. Acima do pó da estrada são as galhas
que estão viradas para cima, e de preferência para o lado de onde vem
o vento;
ós'pois baisse à «cartucheira» e despeja-se metade do bagaço em cima
da morcela, sabiamente zebrada com o «chino» do Palaçouco, que
qualquer português decente devia sempre transportar enrolado no lenço
de mão, até na urna de boto - o «chino» é uma folhinha de aço de doze
centímetros, afiada dos dois lados, com um cabinho de madeira de seis
centímetros, que corta que se farta mas não se vê num lenço de assoar
e que serve para «'chinar» GNR's, Guardas Fiscais, os da «Venatória»,
«Dulces Pontes», «Delfins» e afins.
Já a «cartucheira» é o que sabemos: o «caga-lume» dos pastores, que se
atesta com o «produto do cú»: a primeira aguardente a ser destilada é
chamada «da cabeça», a redestilada é do «corpo» - é a que se bebe como
bagaço -, a pior das piores, a 60 graus ou mais, é a chamada da
terceira destilação por serpentina de cobre e depósito gota a gota,
mais conhecida por trotil do cú!
Telha, galhas de oliveira, morcela de cebola, trotil: bota-se o fogo!
Há que virar a meia cozedura, por causa do «encrispamento»: a morcela
começa a assobiar!. O petisco larga gordura - o dito cujo «unto» - e a
chama começa a passar de azulada a alaranjada - salvo seja! -, e nessa
altura dá-se a volta à morcela - para mnemónica futura, lembra-te que
quando se trata de morcela sem cebola, é exactamente o contrário -
quando a «coisa» aquece, debe-se é dar a volta à gaja...
Adiante.
Quando as galhas de oliveira estiverem mirradinhas e já andarem a
boiar uns olhinhos de gordura da morcela dentro da telha de meia cana,
há que apagar o fogaredo - mas deixar a morcelaça lá dentro da telha,
que está bom e está quentinho - como na bida, aliás...
O petisco vai embutir o resto dos 60º do trotil, devagarinho, porque
os talhos que lhes fizeram com o «coiso» do Palaçoulo já terão
dilatado - e o calor dilata os «copos», como todos sabemos, né?
Se o tunante do iniciante for homem experiante, terá levado o seu naco
de broa, para aproveitar o «trotil» que vai sobrar, mas que se evapora
rapidamente da telha.
Bute, mãos à obra, rilhar a morceleta! Às fatiinhas, cortadinhas com o
«chino» do Palaçoulo, que ainda dá para ganhar o dia na beira da
estrada.
Dez minutos depois de embutido o petisco, é só ir sentar-se num
cantinho, abrir a carcela e escrever numa caixa de chicletes virada do
avesso : «Feito à mão»! Não há holandesa que resista à «berdadeira
alheira», entesada a morcela de cebola, e ali mesmo à mão, na beirinha
da estrada. Ora, o capítulo do dito cujo «débito conjugal» dos livros
de Direito do meu filho diz que esta prestação é devida à legítima
minhota casada, mas que pode ser prestado em «comodato», mediante
acordo e remuneração. Toma lá!
Entrementes, perdido por dez, perdido por mil, seque-se o resto do que
há na «cartucheira», ou, como diriam os discípulos de Frei Tomás,
«Olhem para o que ele diz, não olhem para o que ele faz».
A turista admira o requinte da genuína alheira nordestina, bem nutrida
pelo sangue da morcela e devidamente desinfectada pelo «trotil» a 60º
- de uso interno, somente - e o pessoal vai ouvindo pipilar os
passarinhos e ver arribar as primeiras andorinhas, quiçá curiosas com
o tamanho das minhocas nesta altura do ano.
A época da lampreia foi murcha, João, de Esposende à Valinha só
apareceram coisas murchas e cabos da Guarda. Entremos na «saison» da
morcela, antes de te ensinar o truque para guardares as alheiras um
ano inteiro no calor do lenho.
É mais ou menos assim: vai-se ao monte apanhar Cavacos, faz um
«luminho» para aquecer, e bota-se a alheira defronte da
chama......................................................................................
e não há quem resista
segunda-feira, 4 de maio de 2009
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