segunda-feira, 13 de setembro de 2010

P/reler - comentário de 2004 mt actual

Muito estimada jornalista: A sua blog-carta é mais um grito na àgora, do que uma análise serena de uma coisa pública. Concordo com quase tudo o que diz, mas não posso deixá-la laborar em erro: a «lei do véu», convenhamos, não é do Governo francês, é do presidente francês! Como deve ter reparado, como eu, a França está há anos a ser governada por decreto, sem consensos, sem abertura; há 16 anos, quando tive oportunidade de trabalhar pela primeira vez no "Hexagon", apercebi-me de um problema que hoje é evidente para quem quer que desembarque em Orly – a miscigenação! Há cada vez mais etno-descendentes em França, e inevitavelmente vai haver um problema rácico a gerir. Nós, portugueses, com orgulho e solidariedade, conseguimos integrar em dois anos 800 mil retornados das antigas colónias, pretos, brancos amarelos e «arco-íris», com a ponderação possível em tempos revolucionários conturbados; mas a França ainda tem que pagar a factura de uma colonização agressiva - e de uma hipocrisia incomensurável em relação aos seus magrebinos. Não lhe conto nada de novo quando lhe digo que só no ano passado o Governo francês reconheceu o problema dos harkis e dos massacres cometidos na Argélia. Imagine, com a capacidade que costumam ter os jornalistas, o que larvou dentro das quatro paredes das «cités» entre pais humilhados e filhos revoltados; imagine o que inculcaram os meninos do Magreb traídos no seu futuro – porque os pais eram funcionários, eram técnicos, ou eram franceses debaixo de uma mesma bandeira ; imagine, pois, o que engoliram anos a fio, só porque a sua aparência física delatava a sua origem: os "beurres" topam-se à distância, mesmo sete gerações volvidas. Pois em tempos de pretensa luta global contra o terrorismo, o «beurre» não pode negar que não é ariano: e aí é que está o problema. A sua origem emerge, traída pela pele, pelo nariz, ou por uma fidelidade assumida aos símbolos de comunhão religiosa. Desculpe-me a expressão: eu frequento a França por obrigação profissional, e da última vez que assumi um compromisso duradouro com entidades francesas, senti um choque, que partilhei com um colega seu, e não dos menores. Em Lião, pelo cair da noite, tivemos que cruzar os «Terraux» com a sua lira de água, e foi absolutamente surreal não ver na praça onde estão o museu e a câmara municipal um único francês «de souche»; um único francês europeu, ocidental, e católico da estirpe do rei São Luís. Um único! Naquela noite, o seu colega, mais velho, aplaudiu a mundivivência francesa, a integração, a disparidade criativa dos rapers, dos ravers, dos estroinas e dos bandalhos em chusma, mas eu opinei que o que estava perante os nossos olhos era a face escondida de um iceberg. Como sabe, apesar de escrever a partir de um blog brasileiro, a França é a mais evidente monarquia estalinista do Mundo; recordo-lhe que ao general De Gaulle fazia espécie governar um país com 365 denominações de queijo diferentes certificadas, e que foi esse mesmo De Gaulle que apodou de «vitelos» os franceses pagadores de impostos! Porque a França continua a ser uma monarquia! Nunca deixou de o ser, se excluirmos o período negro do «Terror»… Como lhe disse, trabalho com a França e com os franceses há décadas, de forma muito intensa nos últimos cinco anos – e nunca vi tamanha desfaçatez administrativa, nem tanta sujeição cívica como nos meses mais recentes. A famigerada «lei do véu» é fruto de uma guerra intestina na UMP – o senhor Chirac quis mostrar quem é que manda ao senhor Sarkozy. O ministro do Interior ganhou uma popularidade perigosa aos olhos do soberano, logo, há que suplantá-lo! Veja que o senhor Sarkozy foi recuperado de executivos anteriores a fórceps; na mediocridade do governo, impôs-se com medidas quase ridículas de sujeição aos anseios popularuchos – autoridade acima de tudo, subjugação e decretos em riste. O senhor Sarkozy diz que a delinquência diminuiu – mas não diminui, note! –, logo está justificada a enormidade gasta em aparelhos de vigilância, de constitucionalidade duvidosa; o senhor Sarkozy diz que morreram menos pessoas nas estradas, logo está justificada a devassa do controlo de deslocações; o senhor Sarkozi é jovem (50 anos), é travesso, e como tal atenta à perpetuação da "chirarquie" no poder – há que fazer melhor, sem o demitir e sem admitir o erro de casting do compromisso inicial de formação do governo Raffarin. O senhor Chirac tinha que fazer alguma cois de substancial, colocado entre a espada e a parede – a espada do senhor Sarkozy, a parede de uma ponião publicável que aplaude a firmeza de um ministro demagogo. Claro que há mais Polícia, e mais repressão à delinquência – e um défice de 4,1% do PIB em boa parte provocado pelas despesas abissais do sector público da administração interna. É fácil colocar um radar em cada recta de estrada e um gendarme em cada esquina, mas isso tem um preço – por exemplo, a falta de dinheiro para a investigação médica, e uma ameaça de greve no sector onde a França ainda lidera! Se tiver o telefone da senhora Tatcher, ela explica-lhe como se pagam essas facturas… A lei do véu é, declaradamente, uma aposta na garantia da laicidade do Estado, mas é tanga: não há nada disso! Primeiro, porque a hipocrisia é latente logo nos contornos do debate republicano; o que são sinais ostensivos de religiosidade? Pode haver cruzes católicas ostensivas ao pescoço, claro, se tiverem meio metro de envergadura, como pode ser ostensivo furar a bochecha num ritual filipino em plenos Campos Elísios, mas como pode não ser ostensiva uma kippa celebrante, ou um véu islâmico? O lenço que a minha mulher, católica, enverga em Fátima é ostensivo? As barbas de Salam, o meu amigo sik de Londres, podem ser rarefeitas para se tornarem menos ostensivas? Os «beurres» magrebinos podem ser caiados de um branquinho menos discriminante para não colidirem – ostensivamente - com a cor dos antigos colonizadores? O véu árabe pode ser menos ostensivo se só cobrir uma madeixa de cabelo? E a mini-saia não é ostensiva da «appartenance» à «movida» ocidental? Como é que se reduz o fez marroquino? Para cuecas marroquinas? Um piercing é um sinal ostensivo de estupidez, que San Francisquismo, ou é admissível se for só no dedinho pequenino do pé esquerdo? E o fato-e-gravata? É um sinal ostensivo de adesão à crença na excelência do mercado? É que o meu tio de Mogadouro nem consegue apertar os atacadores de um sapato, quanto mais enfiar uma gravata no pescoço taurino, duas vezes da grossura da cabeça! Mas é pessoa, é gente, é português, europeu e eleitor! Quem pode ser o árbitro do que é ostensivo e do que não é ostensivo? Um senhor ostensivamente vestido de fato e mangas de alpaca, capaz de fazer corar de vergonha um francês de Muroroa? Ou um ministro que, ostensivamente, diz ao juiz investido pela República, que ainda vai ouvir falar dele – uma ameaça óbvia! -, apesar de ser verdade que a amante lhe ofereceu umas botas de pele de crocodilo (ostentisivamente chacinado na Guiana!) com o dinheiro esmifrado à primeira companhia pública de França? Estas contradições é que são ostensivas: os «vitelos» de De Gaulle existem, é um facto, e existem ostensivamente porque permitem razias civilizacionais como esta do véu. Por absurdo, imagine senhora jornalista o que seria um forasteiro como eu, aterrado em Paris, reclamar da República laica francesa a demolição do Sacré Coeur só porque polui visualmente as minhas vistas sobre a Paris «dés Lumnières»! Imagine que povo é esse, que povo, que ao invés do nosso, que só vende os rios que tem, se deixa mobilizar contra o outro, contra o argelino, o marroquino, o tunisino, o líbio, o sírio, o afegão, o albanês, o indiano, mas aceita a cultura norte-americana do produto e do consumo. Se está em França, já reparou na chuva de neologismo com recurso ao inglês? Como é que os nossos amigos dizem fim de semana? É, de facto, avassaladora, um dilúvio autêntico! A lei do véu é apenas mais uma manifestação do «dolce far niente» plasmado por italianos, mas cultivado por franceses. A França será sempre o país de passagem obrigatória para as civilizações ibéricas, e para os povos estinos. Mas ultimamente está a gerir menos bem esse seu capital, essa sua mais-valia civilizacional, obcecada por uma presidência comprometida cível e criminalmente, por um desdém absoluto pela construção da Europa das nações; a orientação política francesa, a que aprovou à trouxe-mouche a famigerada lei que a senhora jornalista vitupera, é a da sobrevivência a qualquer preço do Rei-sol, é a orientação monárquica de um Estado onde só conta o «faber» do homus que paga impostos, impostos que nutrem a nomenclatura, nomenclatura que vela pela subsistência do sistema. Sabia que o senhor Laggerfeld discutiu cara a a cara com o ministro das Finanças a melhor maneira de pagar os seus impostos em atraso? Porque ele era o Karl e o ministro jantava no mesmo restaurante da moda ( que por acaso viciava os dados de origem do seu foie gras, comprado avulso na tasca da esquina…)? Sabia que a senhora Deviers-Joncours é paga para estar calada - a TotalFinaElf não lhe pediu o dinheiro indevidamente entregue, pois não? E os bens do senhor Alfred Sirven, foram confiscados ou sequer arrolados? E os do senhor Pasqua? A política em França é isso mesmo, um subtil e ignóbil jogo de interesses privados, à custa do erário público e de uma forma já quase despudorada. O véu, as cruzes, o chador, são «peanuts», como diz o meu amigo e seu colega! Olhe para a floresta, deixe lá a árvore – mas, pelo sim, pelo não, mantenha um bilhete de avião em aberto, para o que der e vier. O fundamentalismo é como as borbulhas – quanto mais se espremem, mais se atiçam. A França devia saber diluir no caldo de cultura que já foi, os extremismos mais atiçados, mas optou por segregar o que faz parte dela, para o bem e para o mal. Eu sinto-me bem, seguro e entre iguais, quando vou à loja do meu amigo tunisino abastecer-me de uísque, pão e vegetais à meia-noite! Até aprendi que Portugal tem as mesma grafia que laranja nos souks de Tunes! E dei o meu lenço de bolso a um argelino acabadinho de levar «nas trombas» de outros magrebinos junto à gare de Perrache! E o meu taxista favorito é de Marrocos, e rola clandestino há anos – mas nem sou presidenciável, nem quero provar nada a ninguém. A minha casa é o mundo, tem cantos mais claros e outros mais escuros, está arrumada nuns lados e caótica nos outros, sobretudo nas caves para onde, por conforto, atirei os inconvenientes trastes que fazem parte da nossa vida, não é? Mas gosto dela tal como é, ligeiramente anárquica, ligeiramente confortável, ligeiramente exigente em responsabilidade. Olhe, senhora jornalista, dedique-se à pesca, se tem angústias existenciais. E o regime francês, tal como está e os franceses consentem que esteja, nem para isco serve… (Se continuar a escrever no seu blog, eu continuo a implicar consigo. Prometido!)
from jornalista anonimo
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2:03 am - Friday,March 12, 2004

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