quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Atados de pés e mãos

Uma das mulheres que o mundo me permitiu escolher como irmã no colégio de Coimbra, em tempo de revolução de cravos e de lágrimas por África, está a perder o próprio irmão - esse de sangue.
Disse-me algo tão incrível que passo a transcrever (sem citar o hospital em questão a seu pedido):
- "Mudaram o meu irmão de hospital...acho que nunca gostaram dele neste, por ter HIV... e ataram-no de pés e mãos".
Estupefacta, mal caio em mim.
A minha avó esteve oito anos, até morrer, numa clínica norte-americana por sofrer de Alzheimer; partiu-se toda a cair e a bater nos caridosos caribenhos que cuidavam dela, em Boston, e NUNCA a ataram de pés e mãos porque esse é um princípio sagrado dos cuidados paliativos.
Queixem-se à vontade do sistema norte-americano de saúde com os seus seguros.
A França (na Europa, sim) deixou morrer à sede, de desidratação absoluta, cerca de 14 mil idosos que eram visitados, assistidos, por gente da Segurança Social ou por voluntários de algumas ONG's. E é um dos países que mais méritos humanitários reclama...
Portugal, que se inspirou no sistema de saúde dinamarquês - muito melhor do que o francês, está a perder o tino há alguns anos.
Assistir a quem morre, com humanismo, para conferir alguma dignidade no sofrimento, é a mínima das mãos que se pode dar a quem vai, antes de nós, conhecer o Outro Lado.
O primeiro sinal de que algo ia para muito pior, foi dado pelo megaprojecto do fecho dos hospitais de Lisboa como o Estefânia, para abrir uma espécie de hotel hospitalar com cerca de 1000 camas que se há-de chamar qualquer coisa como Todos os Santos (até porque já há uma clínica lisboeta de Todos os Santos).
Como é que se cultiva o humanismo nos corredores e gabinetes que apoiam 800/1000 almas de residentes, turnos de enfermagem, medicina geral e especialidades, com atendimento permanente e urgências, técnicos de toda a espécie, seguranças, etc, etc?
Quantas pessoas vao frequentar essa enorme e glacial aldeia globalizada? Onde ficará a política da proximidade?
A nossa guerra em pequenos espaços, ainda é pelo fomento do gozo da profissão, seja de enfermeiro, técnico hospitalar ou médico. Os turnos já são pesados e continuam mal pagos. Como prolongar a situação numa central hospitalar que ocupa vários hectares? Sim, porque tirar as crianças do Estefânia parece-me mal....
Por agora, gostava que o irmão de sangue desta minha irmã de "colégio interno" tivesse direito a alguma lucidez (que lhe dessem apenas morfina para a dor), liberdade (pés e mãos soltos) e muita meiguice ao mudar os lençóis, ao molhar-lhe os lábios, e a mudar-lhe a posição dos braços e das pernas, que estão tão frágeis! Se é que o fazem...
Não acho que se possa, impunemente - pelo menos a nível moral - deixar alguém morrer sem os cuidados que desejaríamos usufruir em situação idêntica.
Mimo...é o mínimo exijido. Devemos todos tê-lo!
O mimo de quem assiste na morte.

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